São Paulo, domingo, 9 de novembro de 1997.
LIVROS
Em "Guerra sem Batalha",
Heiner Müller fala de sua vida
e de suas influências
JOSÉ GALISI FILHO
especial para a Folha
"Guerra sem Batalha" é um lançamento que certamente mudará o patamar de informação sobre Heiner Müller no Brasil e exige uma consideração detida sobre suas deficiências estruturais e o lugar problemático na obra do autor.
Em primeiro lugar, não se trata formalmente de uma autobiografia, salvo por um critério banal de "conteúdo". A composição do livro tem muito pouco a ver com o traço dominante da dramaturgia de Müller: a relação entre o momento construtivo e não-intencional no próprio material artístico; neste caso, entre a matéria-prima biográfica e o modo pelo qual ela se articula e se objetiva como ficção. Em "Guerra sem Batalha", não se opera uma síntese entre esses dois pólos. O fracasso restringe sua qualidade literária.
Resultado de uma série de conversas entre Müller, Katja Lange-Müller, Renate Immer e Helge Malchow, em 1992, que instigaram o dramaturgo a falar sobre detalhes de sua vida pessoal, a versão final não identifica qualquer um dos interlocutores, nem tampouco é assumida e retocada por Müller.
Confissão
Em um Estado socialista, seria no mínimo irrelevante a questão da moralidade da escritura e de um conceito cristão de verdade. Heiner Müller leu durante anos a obra de Michel Foucault, na qual sentia uma "confirmação" e a quem considerava fora da Alemanha sua "contraparte". E aqui não se trata da confissão de segredos "íntimos" nem tampouco de anedotas. Na verdade, Müller procura articular a relação complexa entre a historicidade desta matéria ficcional e as estruturas de Estado, nas quais estas práticas discursivas devem ser legitimadas. A voz que emerge desse testemunho é antes anônima e incapaz de certezas. A verossimilhança discursiva inscreve-se neste sistema de poder, mimetizando-o.
O episódio referente a "Die Umsiedlerin" (A Espoliada) é sintomático, demonstrando claramente este aspecto. Intimado pelo SED (Partido da Unidade Socialista) a encenar sua "autocrítica" por escrito, Müller comporta-se de modo protocolar e sem a convicção exigida pelo papel. A negligência em enfatizar sua culpa determina uma punição mais rigorosa, a despeito dos conselhos de Helene Weigel. A questão não era realizar apenas uma autocrítica, mas reafirmar a paranóia do aparelho de poder, cuja matéria-prima era a "criação permanente de inimigos de Estado".
Um outro aspecto saliente do texto é a forma pela qual o espaço se dramatiza, implicando um trabalho com as camadas do inconsciente histórico, forjando índices e figuras de sua arqueologia.
O ponto de partida e chegada de "Guerra sem Batalha" é a Estação Anhalter de Berlim, um dos marcos da modernidade de Weimar, ponto de convergência e estação final de seu trabalho de ruínas. É a primeira impressão de Müller ao chegar à metrópole destruída aos 17 anos. Mais tarde, sem autorização de residência, vivendo nomadamente como "flâneur" em Berlim, em "Kneipen" (bares), nos quais uma massa flutuantes de deserdados pagava com bebida o pernoite, Müller entra em contato direto com o material primário de suas peças.
Em meio à insônia, embriaguez, em conversas com velhos soldados da frente oriental, delineia-se o embrião de várias de suas cenas clássicas, como as de "Germania", um hino de amor a Berlim revolucionária. O resultado desse trânsito é um pesadelo de contornos precisos, um negativo e uma topografia da paisagem espiritual do pós-guerra. Em meados da década de 50, com os projetos de reurbanização de conjuntos neo-estalinistas pelo SED, destroem esse bicho boêmio e proletário, e, com ele, sua contraparte de experiência autêntica.
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A OBRA
Guerra sem Batalha -
Heiner Müller. Ed. Estação
Liberdade (av. Dr. Arnaldo,
1.155, CEP 01255-000, SP,
tel. 011/872-9515). 336
págs. R$ 30,00.
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A "linha gótica"
Em um capítulo central, Heiner Müller enfatiza sua relação "seletiva" com Brecht, a partir da "linha gótica" da tradição alemã: a continuidade na destruição. Neste corte invoca-se apenas o século 16, mas toda a tradição radical do marxismo ocidental, que no entre-guerras tentou amadurecer a revolução alemã. De Lukacs de "História e Consciência de Classe" ao "Espírito da Utopia", de Bloch, atravessando Seghers e Brecht para desembocar no anticristo das "Teses" de Benjamin, ecoam os resquícios, a direita e a esquerda, de uma utopia antiestatal e de um potencial de insurreição que remonta a Lutero.
A senha de entrada de Müller no material brechtiano é o complexo "Fatzer" (1927-1930), um material inacabado que mescla reflexões teóricas e um núcleo dramático: a história do desertor Fatzer, baseada num episódio real ocorrido durante a Primeira Guerra. A situação de sítio da inteligência de esquerda no final dos anos 20 obriga Brecht a racionalizar o material e abandoná-lo por "A Decisão".
Durante o exílio, essa racionalização engessa progressivamente seu repertório na forma do aforismo e da sabedoria, "um pacto de parábolas". O triunfo e a internacionalização de Brecht como "clássico" resultariam, portanto, de uma assimilação naturalista de seu repertório e uma exclusão do autor de seu próprio território de verossimilhança, naquilo que é a matéria alemã por definição: o fascismo. E Brecht fracassa exatamente na composição (intenção) idealista de uma perspectiva de classe como totalidade histórica. Hollywood transformava-se na "Weimar da imigração antifascista alemã", assim como o classicismo alemão fora a forma "erstaz" da Revolução Francesa.
A imaginação híbrida
"Guerra sem Batalha" evidencia uma matriz da força expressiva de Müller até agora pouco enfatizada: a imaginação híbrida entre orgânico e maquinal, originária da literatura visionária de Ernst Jünger. O interesse de Müller por Jünger passa além de qualquer "consideração moral". Rompendo com uma tradição romântica, o elogio da força em Jünger revela-se muito mais sinistro e ambíguo porque contém, de modo inequívoco, uma dimensão não-burguesa e não-nostálgica do universo tecnológico.
Müller assume muitos dos anacronismos das metáforas de Jünger, descrevendo um mundo pós-industrial com referentes pré-industriais. Ao capitalizar para si o patos e Jünger para referir-se às modernas sociedades de consumo, sobretudo pelo emprego de metáforas elementares referidas ao universo da incandescência, para personalizar a violência e o caráter abstrato dos processos sociais, Müller caiu numa armadilha ideológica. Compondo este espectro, a concepção decisonista e originária de soberania de Carl Smitt desempenhou nos últimos anos um papel cada vez maior na reflexão de Müller, evidenciada no ciclo dos "Wolokolamsker Chausse 1-5".
Hamlet no Ciberespaço
Contra a força centrípeta e fraudulenta de uma subjetividade originária e constitutiva, Müller opõe-lhe o declínio no movimento interno do próprio material, um vetor imanente ao ciclo histórico do modernismo, simultaneamente seu pressuposto e limite. Nesse sentido, "Hamletmaschine" permanece como sua composição mais enigmática e um exorcismo do sujeito, um golpe de misericórdia em seu fetichismo. A voz anônima de Müller ecoa agora na topografia do ciberespaço. Seu "Não-Hamlet" é o protagonista virtual de um hegelianismo "high tech", uma superconsciência de si e da abstração final de todo trabalho, na desrealização do próprio teatro do mundo, pairando entre sinais luminosos. Neste admirável mundo novo, cada um pode finalmente abdicar da exigência de viver sua identidade na aceleração total.
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José Galisi Filho é doutorando em germanística na "Technische Universitat" de Hannover (Alemanha) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
Wednesday, 26 October 2011
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