São Paulo, Domingo, 10 de Outubro de 1999
JOSÉ GALISI FILHO
especial para a Folha
"Regras para um Parque Humano", o "paper" de 43 páginas lido por Sloterdijk no castelo de Elmau, na Alta Baviera, em colóquio internacional sobre Heidegger, ultrapassou as fronteiras da tolerância e do consenso sobre os quais se alicerça a intelligentsia alemã, desencadeando um ajuste de papéis nas relações entre a mídia e os intelectuais.
Desde a "Polêmica dos Historiadores" ("Historikerstreit"), em 1984, sobre o revisionismo do passado nazista, que consolidava o papel hegemônico de Habermas como a autoconsciência da esfera pública, no início da longa coalização conservadora de Kohl, poucas discussões mobilizaram o debate público nessa escala e intensidade. Como declarou o "Frankfurter Allgemeine Zeitung", o "pathos" antidemocrático do discurso de Sloterdijk seria, de fato, a "fundação metafísica" da República de Berlim e o sintoma do horizonte intelectual decorrente de uma nova constelação de poder.
Seria preciso distinguir, no entanto, pelo menos duas polêmicas em curso. A primeira envolveria a genética, já que o discurso de Sloterdijk se propunha a reinterpretar a mitologia do Além-do-Homem nietzschiano em nova base epistêmica, no território inaugurado pela clonagem. As regras desse "Parque Humano" constituiriam uma modalidade de "metanorma" para além do humanismo clássico, baseada num conceito ampliado de humanidade, para o qual não existiria ainda nenhuma regra e, portanto, uma normatividade que se projete sobre o devir do homem para modelá-lo moral e geneticamente ou para "autodomesticá-lo", nas palavras de Sloterdijk, eliminando o que é espúrio em sua natureza.
Eugenia disfarçada
A intervenção era também uma provocação calculada, com a ambiguidade dos malabarismos verbais típicos de seu estilo, mas o tiro saiu pela culatra, pois ficou claro a todos que Sloterdijk estava falando, de fato, de eugenia, seleção genética por uma "elite", ou mesmo técnicas abortivas pré-natais, palavras que são um tabu absoluto para os alemães.
Se, diante da televisão, Sloterdijk afirma, com seu mestre Heidegger, que essas técnicas de seleção garantiriam a "entrega amorosa do Ser", como um presente de chegada à vida, apenas, contudo, para os que são "convidados" a nascer, passagens do discurso como essas parecem não deixar qualquer dúvida sobre a recaída fascistóide de um ex-intelectual de esquerda convertido em "jovem conservador": "No futuro será necessário jogar este jogo ativamente e formular um código de técnicas antropológicas. Um tal código modificaria a posteriori a significação do Humanismo clássico...". Ou adiante: "Temos de entender que desde sempre os homens foram "fabricados" por uma combinação de regras de classes e castas, regras de casamento e educação; trata-se sempre de uma seleção. Neste meio tempo, novas possibilidades de otimização da espécie humana estão à vista". Ou, ainda pior, a "autodomesticação" nietzschiana de Sloterdijk descobre "novas qualidades" no curso de nossa evolução.
Acusado de não assumir seu próprio argumento, Sloterdijk defende-se, afirmando que seria preciso distinguir uma "medicina genética legítima para a otimização do indivíduo e uma biopolítica ilegítima para grupos". Ele não estaria propondo uma "elite genética desatrelada do resto da humanidade", mas uma nova base de normatividade para esse desenvolvimento. Em outras palavras, se até agora a engenharia genética despertava no grande público sentimentos difusos na expressão inocente da ovelha Dolly, o "paper" de Sloterdijck deu a ela finalmente o rosto de Nietzsche e o sotaque do chauvinismo alemão.
A reação a essas liberdades verbais de Sloterdijk foi violenta. O redator-chefe do "Die Zeit", Thomas Assheuer, denomina o paper de Sloterdijk de "Projeto Zaratustra", um escândalo intelectual que avança nas "visões de mundo delirantes de Nietzsche e Heidegger". Acuado, Sloterdijk desvia o foco do debate e, no mesmo jornal, lança um ataque pessoal a Jürgen Habermas ("A Teoria Crítica Está Morta"), a quem acusa em carta aberta de "jacobinismo intelectual". Daí origina-se uma segunda polêmica, envolvendo o significado e o futuro da Teoria Critica, seja como instituição acadêmica ou como expressão teórica -para Sloterdijk- de um consenso já superado politicamente.
Equívoco grosseiro
Já em seu último livro, "Esferas", lançado pouco antes da polêmica, Sloterdijk preparava esse ataque a Habermas, blasfemando contra o Estado de Bem-Estar Social como a instância que "priva o homem de seu verdadeiro destino". Agora, com Nietzsche, Heidegger e metáforas tomadas de empréstimo da biologia molecular, comete o equívoco grosseiro de identificar a Teoria Crítica na pessoa de Habermas -o único que, efetivamente, já havia liquidado a Teoria Crítica com o "linguistic turn" de sua "Teoria da Ação Comunicativa".
Nessa mesma carta, Sloterdijk referia-se ao passado da Teoria Crítica -sob a égide de Adorno na Escola de Frankfurt e depois representada por Habermas na República de Bonn, ambas as formações alicerçadas numa democracia ainda precária-, em que a legitimidade intelectual nasce necessariamente da má consciência em relação ao passado. Para romper com essa má consciência "paterna", Sloterdijk invoca outros "mestres" intelectuais na trilha oposta daquela fundada por Kant. A resposta de Habermas no "Die Zeit" é fulminante e bem curta. Há espíritos "grandes" e "pequenos" na tradição. Geralmente são os "pequenos" que atendem ao chamado quando invocados, tomando grupos e pessoas como reféns de idéias estapafúrdias.
Em mais um editorial de primeira página do "Die Zeit", Assheuer afirma que as vagas metáforas de genética que Sloterdijk alinha em nome de um acerto de contas com o "Humanismo" derrogado não são outra coisa senão a expressão acabada da legitimação da injustiça social que se segue ao desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social. Com o fim dessa medida de justiça, os mais fracos serão e já estão sendo de fato exterminados pela economia global.
Se o humanismo está liquidado, se no lugar da ideologia e da política temos a genética, então o desemprego em massa não é mais um escândalo, e, portanto, Sloterdijk teria finalmente dado forma mental à Nova República Berlinense.
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José Galisi Filho é doutorando em germanística na Universidade de Hannover (Alemanha) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal (Capes).
Wednesday, 26 October 2011
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