Sunday, 22 April 2012
Fatzer +- Keuner de Heiner Müller* (Revista SÍNTESES, Pós-Graduação IEL - UNICAMP. Vol 1. 1996)
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José GALISI-FILHO
*Texto resultante da dissertação de Mestrado intitulada A constelação do Zénite: imaginação histórica e utópica em Heiner Müller - anos setenta e oitenta, apresentada ao Curso de Letras na área de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem - Unicamp, em 13 de dezembro de 1995, sob a orientação do Prof. Dr. Roberto Schwartz.
RESUMO: 0 dramatugo alemão Heiner Müller (Eppendorf, 1929 - Berlim, 1995) compreende o teatro como o "laboratório da imaginação social". Essa assertiva implica uma consideração e crítica de seus pressupostos materiais, do aparelho teatral como instituição e seus limites, avançando gradualmente até o Espírito da Época ("Zeitgeist"). Nesse sentido, a experiência dramatúrgica alude ao conjunto da experiência social como seu "órgão" de autoreflexividade democrática, não apenas como decalque do existente, mas como um instrumento de descoberta e extensão de suas possibilidades e do seu vir-a-ser, de suas reservas imaginárias. Em meio ao turbilhão de meios tecnológicos, o anacronismo da forma teatral permanece como uma das últimas formas de relação imediata de nossa espécie. A reflexão sobre o "texto" da História é, portanto, a matriz de seu projeto dramatúrgico e a maneira pela qual se tece representa a produção da própria subjetividade como uma consciência de si e dos estratos que compõe sua temporalidade impura; mas é também a produção de seu "inconsciente ", de seus recalques e do esquecimento. O relógio da História, para Müller, corre em sentido inverso do presente até atingir a estrutura mitológica que "fecunda ", por assim dizer, este texto. Equilibrando-se entre a reflexão histórica, saturada de presente e articulada numa complexa noção de material artístico como "fragmento sintético" - um trabalho sobre as fraturas, descontinuidades e imprecisões das obras do passado, sobre a "inércia" que se revela em sua traditio -, e a necessidade em "olhar no branco dos olhos da Historia ", como entende a capacidade política em seu sentido pleno, além da gravitação das ideologias e da política como esfera da instrumentalidade e engenharia socialmente eficaz, o olhar de Müller para o zénite da História é a ruptura de sua continuidade, a primazia da visão epifânica que transfigura e intensifica seus significados. Para Müller, este instante não é produto do acaso mas, incorporando a noção de Carl Schmitt de seu ensaio Hamlet ou Hécuba: a irrupção do tempo no jogo, a formação de uma constelação trágica pela irrupção do tempo empírico na cena. Essa intrusão implode a moldura formal, colocando em movimento camadas profundas da experiência histórica sob o chão do presente. A afirmação de um sujeito histórico universal nos ensaios produzidos por Heiner Müller durante os anos setenta e oitenta é também correlata de um conceito de experiência genuína ("autentische Erfahrung") no campo da arte. Entretanto, a ênfase na substancialidade desse sujeito não resiste muitas vezes ao próprio paradigma intelectual em que se move e à maneira pela qual se articula, desfazendo-se como fantasmagoria. Os anos Honecker (1971-1989) caracterizam-se por uma deslegitimação progressiva da RDA nos planos interno e externo. Essa perda de horizonte utópico ("Utopieverluste") traduziu-se, em parcela considerável da inteligência leal da RDA, por uma conversão de paradigma conceituai ("Paradigmawechsel"). O foco da crítica desvia-se do campo do socialismo real para o âmbito civilizatório. Como parte desse complexo, pode-se pensar a dramaturgia de Heiner Müller como um instante privilegiado da apropriação de A Dialética do Esclarecimento (1947) na RDA, cujo impacto, embora tardio, foi decisivo nessa conversão. Antes de representar a recepção pontual de um livro, A Dialética do Esclarecimento parece oferecer anacronicamente as categorias práticas de uma experiência de secularização intelectual a toda uma geração, através da desilusão ("Enttäuschung") com um espaço político cada vez mais restrito e suplantado pelo gerenciamento tecnocrático da economia, depois do fechamento da fronteira em 1961. De modo mais atento, seria possível perceber na terminologia crítica de Müller a restauração de figuras típicas do pensamento vitalista alemão de fins do XIX, tangenciando muitas vezes um diagnóstico conservador de crítica à modernidade. Se a derrocada do socialismo não deixava outra alternativa senão o avanço civilizatório, o teatro tardio de Müller e sua reflexão invocam poderes elementares e um culto dionisíaco para conjurar o presente. Esse investimento semântico anacrônico é incompatível com o próprio caráter descontínuo de sua escrita, de sua fragmentação. Contabilizando também para si a vantagem de estar à margem do debate ideológico, a noção de experiência em ti einer Müller transita em um "jargão de autenticidade" (Adorno) que extropola do campo da crítica estética para implicar o conjunto da cultura como "corretivo" de suas reservas utópicas. Essa incongruência é o foco de minha análise.
No conjunto da produção ensaística de Heiner Müller, Fatzer+- Keuner ocupa uma posição estratégica, delineando, em muitos níveis, a organicidade de sua articulação ao projeto de Brecht, com ênfase à fase tardia da RDA, após o retorno do exílio (1949). Elaborado em 1980, pode ser considerado como a "suma" da relação de Heiner Müller com as linhas de força do material brechtiano.
A formulação polar do texto é indicativa de uma síntese impossível fora do território do "clinch", o "corpo-a corpo" histórico. As figuras de Keuner e Fatzer espelham a unidade contraditória do projeto, duas atitudes ("Haltungen") no interior do mesmo material, dois vetores e uma simetria, que, muito além de indicar dois momentos extremos da carreira de Brecht, são a própria estrutura de sua experiência. Não se trata apenas de limites temporais polares, mas da própria lógica extrema a que esse material está submetido pelas pressões de uma temporalidade histórica destrutiva, que foi o caminho da Alemanha para a anarquia e destruição generalizada.
De um lado, a "Untergang" do anarquista e desertor Fatzer (1) ("o filho rebelde"), no limiar da gestação da Lehrstück (peça didática), abandonada pela dramaturgia épica do exílio; de outro, o pensador Keuner, cuja "sabedoria" e "pose clássica" são antecipações do funcionário da máquina cultural estalinista. Essa "guinada" opera-se à revelia do sentido totalizante e orgânico que Brecht imprimiu a seu projeto, pela leitura retrospectiva que as categorias marxistas lhe ofereciam no prefácio às suas primeiras peças, já pelo fim de sua carreira.
Ao aproximar as duas figuras como "grandezas" polares, Heiner Müller resguarda o que acredita ser o "núcleo teológico incandescente" (expressão de Adorno a propósito da compreensão de Benjamin do marxismo, em carta de 02.08.1935) da obra de Brecht, justamente a partir de duas experiências que não amadureceram abortadas pela História, permanecendo fragmentos genuínos. A simetria entre ambas, antes de ser uma afirmação da "plenitude" e da "maturidade'" do projeto tardio, é o reconhecimento das descontinuidades que o motivaram e das soluções de compromisso que o afastaram de seu plano inicial, isto é, da gravidade da "matéria alemã": o colapso da República de Weimar (Fatzer) e o levante operário de 17 de junho 1953 contra a elevação das normas do trabalho pelo SED (Partido da Unidade Socialista) - na tentativa da biografia histórica do stakhanovista Hans Garbe, "Herói do Trabalho" em 1949, um dos mitos fundadores da jovem República (fragmento Büsching) -, reprimido por tanques soviéticos, a operacionalização de um "projeto" e de uma "suma" através da categoria de totalidade que engendra na obra sua própria pedagogia, e o reconhecimento tardio de que a "classe" não passava de uma "ficção" em 1953; o anarquismo como dimensão pós-burguesa da experiência no drama da deserção (Fatzer, 1927-1931), e a constatação final, segundo uma intuição já antiga de Brecht, de que a classe operária alemã fora disciplinada pela indústria de guerra fascista (fragmento Büsching, 1951-1954), pois suas energias teriam sido "drenadas" no instante em que estavam maduras para a revolução, o que explicaria a ferocidade desta mesma máquina de guerra; a "nova miséria alemã" na "hora zero"; em ambos os extremos, coalizões inusitadas, preparando o artesanato da guerra civil. Fatzer e Büsching como espectros da anarquia, diluindo-se antes que atingissem um patamar artístico reproduzível e de se configurar como forma, ameaçando, assim, a disciplina partidária do funcionário da máquina cultural estalinista; keuner, o aforismo como compromisso e racionalização.
Os pontos de intervenção de Heiner Müller sobre o material brechtiano poderiam, dessa forma, ser condensados em dois eixos complementares:
1) o repertório épico desenvolvido no exílio corresponde à necessidade histórica em racionalizar a luta de classes na perspectiva da luta contra o fascismo. Este influxo externo traduz-se como uma vigorosa disciplina artística no trabalho com os materiais e num alto patamar técnico, cada vez mais modelar e assimilável pela grande empresa teatral. Mas a certeza de Brecht da vitória sobre o fascismo significava também a unidade do desenvolvimento histórico, que desmentiu uma por uma de suas premissas, em especial sua convicção na existência de uma "classe" operária como virtualidade desse desenvolvimento e como totalidade. Esse distanciamento da realidade alemã, respaldado por uma compreensão economicista do fascismo, determinará uma representação ideal e abstrata de seus mecanismos de cooptação do imaginário das massas, muito distante de sua forma de "aparição concreta", tendendo para o "naturalismo" (Terror e Miséria); em outras palavras, a dramaturgia épica engessa-se gradualmente na forma do aforismo e nos gestus da sabedoria;
2) esse "naturalismo" significa, para Müller, a exclusão do autor da realidade de seu próprio material, uma "Austreibung des Autors" (expulsão do autor) de seu próprio território e verossimilhança, o que se torna patente na representação do fascismo em Terror e Miséria (1938); a disciplina e o acabamento artísticos determinaram um fechamento da forma que se torna insuficiente para capturar as novas contradições emergentes.
Este diagnóstico de Müller é o ponto a partir do qual pretende realizar uma negação determinada da "intenção"/atitude de Brecht diante da "matéria genuína alemã" por excelência, isto é do fascismo, trabalho que amadureceria em Die Schlacht (A Batalha), em 1975. Heiner Müller denomina essa redução de "fragmento sintético", uma forma de engendrar a descontinuidade no interior da representação, estabelecendo uma homologia estrutural com a experiência histórica de todos os fracassos sociais acumulados na história alemã.
1. Fatzer é um complexo de fragmentos escritos entre 1927 e 1931, combinando em sua estrutura materiual dramático e reflexivo. Brecht publicou apenas três cenas no primeiro caderno de seu Versuche (o 12. e último volume da edição Teatro Completo de Brecht, editado pela Paz e Terra, traz esses fragmentos em tradução de Ingrid Dormien Koudela, no original: GW 7, 2893-2912). Fatzer nunca ganhou contornos definitivos, e nem mesmo poderia ser considerado, de acordo com as exigências da reprodutibilidade de modelos do teatro épico, um produto acabado. Mas existe uma coincidência cronológica entre os Versuche, a assimilação de Brecht ao corpus doutrinário do marxismo, a derrocada da República de Weimar e o cerco que o fascimo imporá à inteligência de esquerda.
A situação de sítio e capitulação parecem fornecer a tônica. Quando publicou Die Massnhame (A Decisão), Brecht decidiu-se por abandonar o texto. No âmbito dos estudos brasileiros, para uma compreensão exaustiva e de rigor filológico do complexo didático de Brecht é imprenscindível a leitura do trabalho de Ingrid Dormien Koudela: Brecht: um jogo de aprendizagem, São Paulo, Perspectiva, 1991. O trabalho de Ingrid oferece um amplo painel do problema e a tradução de muitos textos inéditos indispensáveis para se compreender o caráter estratégico da dramaturgia didática no projeto brechtiano. A fábula da peça foi assim descrita por Brecht (op.cit. p. 41-42): "Em Müllheim, no Ruhr, ocorreu, no tempo despido de toda moral da Primeira Guerra Mundial, uma história entre quatro homens, que culminou com a total destruição de todos os quatro, mas que, em meio a assassinato, quebra de julgamento e perversão, mostrava os rastros sangrentos de uma nova moral. No terceiro ano da guerra, desapareceram, durante o ataque diante de Verdun, quatro homens, a tripulação de um tanque. Eles foram julgados mortos e apareceram, no início de 1918, secretamente em Mülheim, onde um deles possuía um quarto e um celeiro. Diante da ameaça constante de serem presos e executados como desertores, era-lhes difícil arrumar o sustento, tanto mais quanto eram quatro. Decidiram, no entanto, não se separar, já que sua única perspectiva era que uma revolta do povo terminasse a guerra insensata e aprovasse a deserção. Sendo quatro, esperavam poder auxiliar a revolta por eles esperada.
Durante duas semanas, procuraram noite após noite, alguma possibilidade de garantirem o abastecimento. Só perto do final do segunda noite, o mais esperto deles, Johann Fatzer, que os havia aconselhado a desertar, conheceu um soldado que lhes prometeu arrumar alimento. No noite seguinte, os quatro deveriam aparecer, guiados por Fatzer, na estação ferroviária. Embora cudo tivesse sido combinado com detalhes, o empreendimento foi por água abaixo porque Fatzer não apareceu na hora combinada. Intimado a falar, usou desculpas e, quando os outros insistiram, recusou-se a dar qualquer resposta com a observação de que não devia resposta porque era um homem livre. Prometeu no entanto voltar na noite seguinte, o último prazo, já que o trem com mantimentos partiria no dia seguinte. Mas nessa noite Fatzer tampouco apareceu." Enquanto "experimento" ("Versuch"), Fatzer seria o vestíbulo e laboratório de novas formas dramáticas, não necessariamente passíveis de serem apresentadas. A moralidade desta pequena coletividade sitiada pela guerra prenunciava um novo patamar para as relações sociais, emancipadas do lastro da experiência burguesa. O egoísta Johann Fatzer representa, portanto, o espectro do anarquismo na figura do "filho rebelde", mantendo uma analogia com a primeira fase de Brecht, que é sua passagem de Augsburg para a metrópole Berlim. Mas este projeto foi abortado historicamente com a ascensão do fascismo e exigiu de Brecht um alinhamento não apenas partidário, mas um fechamento formal que a moralidade de Fatzer não lhe permitia na forma da fábula, nas palavras de Müller, no exílio formal da fábula e na fuga para a classicidade. No limite de uma nova sociabilidade, Fatzer permanecerá um fragmento genuíno e não-intencional. Ao relacionar dois pontos extremos da carreira de Brecht, Heiner Müller deduz dessa conversão a própria organicidade de seu projeto em relação a seu mestre.
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Fatzer +- Keuner (1)
Eu cago
para a ordem do mundo
eu estou
perdido.
A ausência de revolução burguesa na Alemanha possibilitou e, simultaneamente, exigiu o classicismo de Weimar como supressão/conservação/elevação ("Aufhebung") das posições do Sturm und Drang. O classicismo como substituto ("Ersatz") da revolução. Literatura de uma classe vencida; forma como compensação; a cultura como maneira de se relacionar com o poder e veículo de falsa consciência. A opção consciente de Goethe pelos jambos de Ifigênia contra os tecelões famintos de Apolda é paradigmática. O desastre de mais pesadas conseqüências da História recente talvez tenha sido o fracasso da revolução proletária na Alemanha e seu estrangulamento pelo fascismo. Sua conseqüência mais grave: o isolamento do experimento socialista na União Soviética, num campo experimental em condições não desenvolvidas. As conseqüências são conhecidas e não foram superadas. A amputação do socialismo alemão através da divisão da nação não está entre as piores. A RDA pode conviver com ela.
Para Brecht, a expulsão da Alemanha, o afastamento das lutas de classe alemãs e a impossibilidade de prosseguir seu trabalho na União Soviética significaram a emigração para o classicismo. Os Ensaios 1 - 8 contêm, quanto a uma possível eficácia política imediata, a parte viva de seu trabalho, seu núcleo teológico incandescente ("teologischer Glutkern"), no sentido em que Benjamim compreendia o marxismo.
Hollywood tornou-se a Weimar da emigração antifascista alemã. A necessidade de silenciar sobre Stalin, cujo nome, enquanto Hitler estava no poder, era sinônimo de União Soviética, tornava necessário o recurso à universalidade da parábola. Os diálogos de Svendborg referidos por Benjamin informam sobre isto.
A situação da RDA no contexto nacional e internacional durante a vida de Brecht não lhe ofereceu nenhuma saída do dilema clássico.
Entre os temas discutidos em Svendborg entre Brecht e Benjamin estava Kafka. Nas entrelinhas de Benjamin, surge a questão de saber se a parábola kafkiana não é mais ampla, se não é capaz de compreender mais realidade (e dá mais de si) que a parábola de Brecht. E isto, não apesar de, e sim porque justamente ela descreve/expõe gestos sem sistema referencial, não orientada para um movimento (praxis), não redutível a uma significação, é antes mais estranha que alienante, é sem moral.
Os desmoronamentos da História recente causaram menos estragos ao modelo da Colônia Penal que ao edifício dialético ideal das peças didáticas. A cegueira da experiência kafkiana é a legitimação de sua autenticidade. (O olhar de Kafka como olhar para o Sol. A incapacidade de olhar no branco dos olhos da História como fundamento da política.) Apenas a pressão crescente da experiência autêntica, supondo-se que ela 'contagie as massas', desenvolve esta capacidade de encarar o branco dos olhos da História, que pode ser o fim da política e o começo de uma História do homem. O autor é mais inteligente que a alegoria; a metáfora, mais inteligente que o autor.
Gertrude Stein, num texto sobre a literatura elisabetana, explica sua violência pela velocidade da mudança de sentido na linguagem: 'Tudo se movimenta intensamente". A mudança de sentido é o barómetro da pressão da experiência na aurora do capitalismo que começa a descobrir o mundo como mercado. A velocidade de mudança de sentido institui o primado da metáfora, que serve de filtro visual ao bombardeio das imagens: "pressão da experiência impele a linguagem para a poesia" (Eliot). O temor à metáfora é o medo do movimento autônomo do material. O medo da tragédia é o medo da permanência da revolução.
Lembro-me de uma observação de Wekwerth na preparação de sua montagem de A Santa Joana dos Matadouros. Dependia daquilo que Brecht havia esclarecido: obscurecer para que possa ser visto novamente; Hegel: o familiar/conhecido ("Bekannte") não é reconhecido ("erkannte") etc. A história das esquerdas européias faz pensar se também Hegel, neste caso, não deve ser revisado. Ainda aparecem, "repentinamente", zonas de sombras desconhecidas em cada território que o Esclarecimento colonizou. A aliança com o racionalismo sempre de novo desguarneceu as costas da esquerda aos punhais da reação, preparados nessas zonas de sombra. O reconhecido ("Erkannte") não é familiar/conhecido ("bekannt")."
A insistência de Brecht, em suas últimas conversas com Wekwerth. na ingenuidade como categoria primordial de sua estética, elucida esta constatação.
A obstinação de Brecht em não compreender Kafka, ou ao menos em compreendê-lo erroneamente, deduz-se das anotações de Benjamin sobre as conversas de Svendborg.
Por volta de 1948, a NDR (Rádio Hamburgo) transmitiu um programa dedicado aos dois representantes da literatura engajada: o católico Eliot e o comunista Brecht. Uma frase de Eliot servia de gancho: "A poesia não importa" ("poetry does not matter"). Lembro-me de uma frase da entrevista com Brecht: a continuação, a continuidade, engendra a destruição. Mais tarde, num texto que fala da situação do teatro na Alemanha do pós-guerra, Brecht explicitou mais pormenorizadamente esta idéia: os escombros ainda não foram removidos, mas já se constroem novas casas sobre eles.
O paralelo é óbvio com a observação de Thomas Mann sobre a história alemã, segundo a qual nenhuma época foi vivida até o fim, porque nenhuma revolução foi bem sucedida, o que bem ilustra a fisionomia das cidades alemãs. Isto não quer dizer forçosamente que Brecht tenha lido o Faustus.
O germanista Gerhard Scholz relata uma conversa que teve com Brecht sobre o futuro do socialismo durante os anos de exílio comum na Escandinávia. Brecht polemizava, pelo menos em parte seriamente, contra a estratégia da "Frente Popular" com o sonho "fatzeriano" de estabelecer uma ditadura comunista (célula), por exemplo, em Ratibor ou outra cidade qualquer para estatuir um exemplo.
No mesmo ano de 1948, por ocasião de um debate com estudantes em Leipzig, Brecht assim formulava seus objetivos de trabalho na Zona de Ocupação Soviética: vinte anos de demolição ideológica e sua necessidade de dispor de um teatro para "a produção científica de escândalos", visando à divisão política de seu público, em vez de uma ilusória "unidade" na aparência estética. Em outras palavras, sua esperança num teatro político situado além das contingências do mercado.
Um teatro para o qual a contradição entre o sucesso ("Erfolg") e a eficácia ("Wirkung") seria uma oportunidade e não um dilema como na sociedade capitalista. Essa era uma antecipação, uma projeção sobre o futuro que, mesmo vinte e três anos após sua morte, ainda não se realizou. Os escândalos, como faísca de ignição do grande debate, não tiveram lugar no teatro, mas sim nos suplementos culturais dos jornais como um entrave à discussão. Teve-se que construir novas casa mais rapidamente antes que se pudessem remover os escombros. O estado de sítio em que se encontrava a RDA em virtude da Guerra Fria (e que permanece ainda entre as duas Alemanhas) exigia e exige a ideologia.
Entre o posicionamento de Leipzig e a frase do prefácio tardio às primeiras peças, que formula a renúncia ao ideal da tabula rasa, do puro modelo, assim formulado: talvez a História faça tabula rasa, mas ela teme o "vazio" deixado neste vácuo... encontra-se a experiência brechtiana da RDA. Uma parte essencial dessa experiência reside na descoberta da amabilidade como categoria política. O trabalho de Brecht no teatro: uma tentativa heróica de desentulhar os porões, sem colocar em perigo a estabilidade das novas construções. (Esta formulação define o dilema fundamental da política cultural da RDA.) Nesse contexto, as adaptações dos clássicos não constituíam um desvio das exigências do momento, mas sim revisão do revisionismo do classicismo, ou seja, de sua tradição.
A dificuldade de Brecht em trabalhar sobre um material originário da própria RDA aparece claramente na história do projeto Büsching. O primeiro esboço tende para uma peça histórica: o operário (Garbe) como personagem histórico. Com uma diferença decisiva em relação a Plutarco-Holinshed-Shakespeare: o herói é seu próprio cronista. (Brecht solicitou a Käthe Rülicke que elaborasse o material, partindo dos relatos de Garbe, gravados em fita.) Essa diferença corresponde ao problema: o material não flui nos cinco atos, falta dramaticidade ao herói inconsciente, ou melhor, é necessário outro drama. Brecht havia elaborado seu arsenal de formas numa outra realidade, a partir da situação de classe e dos interesses do proletariado europeu anteriores à revolução.
Após a dizimação da vanguarda, a depravação das massas e a devastação do leste da Alemanha e da União Soviética pela Segunda Guerra, a revolução na RDA somente pôde ser realizada para e não pela classe trabalhadora. A ratificação posterior na consciência teve de ser exigida dela nas condições da Guerra Fria, num país ocupado e dividido, sob o matrequear cotidiano da publicidade dos milagres do capitalismo do outro Estado alemão, sucessor de direito do Reich, saneado e reduzido em suas dimensões em duas guerras mundiais. As categorias do marxismo clássico não são suficientes para compreender essa realidade: antes a prejudicam ("sie schneiden ins Fleisch").
Observando que o material não era suficiente senão para uma peça de um ato e que não existia qualquer possibilidade de conferir ao seu herói a escala expressiva de que necessitava para escrevê-la, ele, Brecht, abandonou primeiramente o projeto Büsching. Isso lembra a tese de Plekhanov sobre a falta de de interesse (positivo) do herói proletário, em oposição ao interesse negativo do herói burguês, sendo que a primeira qualidade do proletariado é sua quantidade e assim por diante... Brecht retomou o projeto, desta vez, sob a forma de uma peça didática "com coros" no estilo de A Decisão, depois de 17 de junho de 1953,
quando ele, pela primeira vez, ouvia os gritos e a marcha da "classe", como sempre depravada e manipulada por seus inimigos. A confrontação como possibilidade de abertura da "Grande Discussão", que é pressuposto do produção, permaneceu como fragmento.
As malhas de sua dramaturgia (de Brecht) eram bastante frouxas para o caráter microestrutural dos novos problemas: a própria "classe" já era uma ficção, na verdade, um agregado de elementos novos e velhos, justamente os operários da construção que haviam tomado a iniciativa da primeira greve na Avenida Stalin,
provinham, em grande parte, da classe média rebaixada: velhos oficiais do Exército, funcionários do Estado fascista, professores secundários e assim por diante, aos quais se juntavam membros fracassados da nova burocracia. O Grande Projeto fora enterrado pela tempestade de areia das realidades, não sendo possível compreendê-lo (pô-lo a descoberto pelo simples distanciamento), em que se baseia/depende da negação da negação. Nesse contexto, não deixa de ser interessante a utilização de Gerhart Hauptmann por Brecht e seu fracasso com a adaptação de Biberpelz e Roter Hahn: a violência do tribalismo e os terrores da província."
Os Dias da Comuna, escritos para o repertório de um teatro socialista, com a redução consciente do "nível técnico", está para socialismo real assim como Don Carlos para a revolução burguesa. Sua beleza é a beleza da ópera, seu pathos é o da utopia. Até sua morte, o próprio Brecht provavelmenete não viu nenhuma possibilidade de encenar esta peça sem prejuízo da realidade/eficácia ("Wirkung"). O momento da estréia no Berliner Ensemble em 1961, após o fechamento da fronteira, foi o primeiro possível. Na situação dada, não foi empregado o modelo que somente poderia ter sido utilizado com a posterior apresentação de novas peças. Como evento isolado, essa montagem vinha simultaneamente muito tarde e muito cedo: muitas possibilidades tinham sido perdidas, muitos problemas adiados.
Turandot, a última tentativa de Brecht de, com recurso à parábola, sanear a velha merda que ele via resurgir novamente, é um fragmento genuíno. A conclusão forçada da peça pelo recurso ao antifascismo, que, no que dizia respeito à RDA, aparece como álibi, destrói a sua estrutura. É possível que em outros contextos, ditaduras militares do Terceiro Mundo, por exemplo, essa fissura que atravessa a peça permita/libere um olhar daquilo que é o pressuposto de sua intervenção. Brecht: o que confere duração às obras de arte são seus defeitos.
O nome Büsching, como outros nomes do projeto Garbe, remetem ao material Fatzer, o maior esboço/projeto de Brecht, e o único texto no qual ele, como Goethe com o material do Fausto, permitiu-se a liberdade de experimentação, desonerando-se da obrigação de forjar um produto perfeitamente acabado para as elites contemporâneas ou do futuro, de embalá-lo e entregá-lo a um público, a um mercado. Fatzer é um produto incomensurável, escrito como exercício de autocompreensão. O texto é pré-ideológico, a linguagem não formula resultados do pensamento, mas sim o coloca de escanteio.
Ele tem a autenticidade do primeiro olhar sobre o desconhecido, o espanto da primeira aparição do novo. Com os tópicos do egoísta, do homem-massa, do novo-animal, aparecem, sob o modelo dialético da terminologia marxista, os princípios dinâmicos que, na História recente, perfuraram esse esquema. O gesto da escritura é aquele do investigador e não do erudito que interpreta resultados da investigação, ou do professor que os transmite. É neste texto que Brecht pertence menos aos marxistas que foram o último pesadelo de Marx (Por que não valeria também para Marx que o horror é a primeira manifestação do novo, o medo, a primeira configuração da esperança?) Com a introdução do personagem Keuner (metamorfose de Kaumann/Koch em Keuner) o projeto começa a fenecer em moralidade. A sombra da disciplina partidária leninista, Keuner, o pequeno-burguês com "look" de Mao, a máquina de calcular da revolução. Fatzer como a batalha de material entre Brecht e Brecht (= Nietzsche contra Marx, Marx contra Nietzsche). Brecht lhe sobrevive, por ter se excluído. Brecht contra Brecht, com a pesada artilharia do marxismo-leninismo. Aqui, nesta virada do anarquista em funcionário, compreende-se a crítica escarninha de Adorno sobre os aspectos pré-industriais da obra de Brecht. Aqui nasce, da impaciência revolucionária em face da imaturidade das circunstâncias, a tendência de se substituir o proletariado que desemboca no paternalismo, que é a doença dos partidos comunistas. Aqui começa, na defesa do matriarcado anárquico-natural, a transformação do filho rebelde em pai que consolidou o êxito de Brecht e impediu sua eficácia. A retomada da popularidade pela reintrodução do culinário (em seu teatro), que determina a última fase de seu trabalho, tornou-se uma antecipação no turbilhão embrutecedor dos mídias e em vista da fixação póstuma da figura do pai pela política cultural socialista. Aquilo que foi eliminado foi o presente, a sabedoria, seu segundo exílio.
Brecht, um autor sem presente, uma obra entre o passado e o futuro. Hesito em formular isto como uma crítica:
o presente é a época das nações industriais, a História por vir, assim espero, não será por elas realizada; dependerá de sua política se deve ser temida. As categorias de verdadeiro e falso passam à margem da obra de arte. A estátua da liberdade de Kafka enverga uma espada em vez de uma tocha. Utilizar Brecht, criticá-lo, é traição.
1. Heiner Müller, Rotwelch, pp. 140-149. Publicado pela primeira vez no Brecht-Jahrbuch 1980. Frankfurt (Main), 1981. Elaborado como contribuição ao encontro do 5o. Congresso Internacional Brechtiano na Universidade de Maryland. Titulo original: Fatzer+-Keuner. Esta tradução foi cotejada com uma versão publicada em Teatro na Alemanha 1960 - 1984, uma exposição do Instituto Goethe no Brasil. São Paulo, Instituto Goethe, 1984.
Publicado em Sínteses Teses. Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, v.1, p.117 - 126, 1996.
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