Wednesday, 2 November 2011
JOSÉ GALISI FILHO
Especial para o JB
HANÔVER - 0 presidente da Alemanha, Johannes Rau, assumiu em julho de 1999, na transferência do parlamento de Bonn para Berlim. Filho de um pastor pietista e livreiro de Wuppertal, Rau construiu sua carreira no Partido Social-democrata de Willy Brandt como moderador, mas sobretudo como "advogado das causas mais humildes", como o define seu amigo Oskar Lafontaine. Na era das megafusões, pode parecer anacrônico lembrar que a escala da existência individual, como diz Rau, depende de vínculos locais e comunitários. No dia 1" de julho, a Alemanha inaugura a Expo 2000, em torno do tema "Homem, Técnica e Natureza" e da pauda Agenda 21, centro de gravidade política externa alemã desde a Conferência do Rio em 1992. Rau falou ao JB sobre as expectativas do evento - do qual o Brasil participará com vários projetos, entre os quais a urbanização de favelas da Secretaria de Habitação do município do rio de Janeiro -, sobre o papel da Alemanha e da União Européia no cenário mundial e sobre aquela que parece ser hoje uma Segunda Internacional - civil e não gõernamental - de resistência à globalização e ao declínio político do Estado nacional, que Rua chega a definir com um latrocínio.
- Que tradições da República Federal devem ser preservadas na nova República de Berlim?
- Nós não recriamos o nosso Estado democrático, a República Federal da Alemanha, nem em 1990, com a unificação do nosso país dividido, nem com a mudança da capital de Bonn para Berlim. Somos e permaneceremos a República Federal da Alemanha, e não vejo motivo para buscar uma nova designação. Também a Alemanha unificada necessita de uma política de boa vizinhança interna e ex-ternamente. Soluções alemãs isoladas são proibitivas, em nosso próprio interesse. Necessitamos de uma política que concilie a capacidade de desempenho econômico com a justiça social. Também a orientação pelos princípios básicos do iluminismo continua sendo uma missão, independentemente de onde sejam aprovadas as leis ou tomadas as decisões políticas. A mudança para Berlim não significa uma volta ao Estado nacional clássico. O modelo bem sucedido, com o qual queremos manter compromisso - da mesma forma que o Brasil - é o da ordem federalista.
- No cenário da globalização, o valor de capital não se afere mais em marcos ou dólares, mas em bits e bytes. Como lastrear a democracia ante a incongruência entre o espaço econômico e o espaço de jurisdição do Estado?
- São indiscutíveis as vantagens da globalização: cooperação reforçada, divisão vantajosa de trabalho e melhor aproveitamento dos recursos. Mas precisamos ver também os seus perigos. A globalização não beneficia a todos, nem todos podem conviver bem com ela. As transferências financeiras à velocidade da luz, os processos velocíssimos de decisão e mobilidade ampla quase não trazem proveito para um lojista de uma cidadezinha. Além disso, o homem é um ser enraizado, que necessita de vínculos, precisa ter, geográfca e espiritualmente, uma terra natal. Ambos esses vínculos são nexistentes nas leis do mercado sem limites, globalizado. Tudo que teve peso e significado até agora é questionado: a identidade cultural e regional, a soberania nacional, as diferenças ideológicas. À ambição de domínio do mercado temos de opor, por isso, os valores que não podem ser expressos em preços, mas que mantêm coesa a nossa sociedade: amor ao próximo, estabilidade, fi-delidade, confiabilidade, engajamento cívico voluntário. O direito e a honra de cada um necessitam de proteção através de instituições fortes da comunidade. Instituições que não se orientam apenas pelo presente, mas se preocupam também com o futuro das gerações. Por isso, precisamos discutir novamente a tarefa do Estado num mundo globalizado. Se ainda há poucas décadas havia que lutar com o Estado para conquistar liberdades civis, compete a ele hoje a função de preservar e defender as conquistas do passado, para que a liberdade econômica ilimitada não leve ao cerceamento da liberdade individual e à devastação social. Um sistema comunitário, um Estado, que não tenha como meta a criação da justiça, seja qual for o seu aspecto concreto, não seria mais que um bando de ladrões miseráveis, um latrocínio, como disse Santo Agostinho.
- Com o conceito de "brasilianização do Ocidente", o sociólogo Ulrich Beck em seu último livro. "Admirável Mundo Novo do Trabalho", defende a tese de que a crescente flexibilização do trabalho na Europa aponta para uma mudança do paradigma da sociedade de plena ocupação para novas formas de desempenho, em contradição com a jurisdição do Estado sobre o trabalho. Beck sugere, por um lado, como alternativa ao trabalho regular, modalidades de trabalho civil além do controle burocrático e fiscal do prório Estado, que rompam a gaiola conceitual da sociedade de plena ocupação, na qual a identidade social está sempre aferida à seguridade social,mas, por outro, que abram caminho para formas de democracia participativa em entidades civis de caráter transnacional. Como o Sr. avalia essas teses?
- Está entre as grandes tarefas do futuro organizar e configurar o trabalho de forma que as necessidades das pessoas possam harmonizar-se com as exigências administrativas. Também no futuro, o trabalho remunerado será a medida decisiva do status e a renda, mas também para a autoimagem e a autoconfiança das pessoas. Nem só do pão vive o homem, é verdade, mas ele também não pode viver sem o pão. O trabalho serve à subsitência. Isto lhe dá um valor imediato. Mas nele desdobram-se também as capacidades humanas, e isto lhe dá um valor adicional. Sem um trabalho razoável, perde-se um pouco da dignidade humana. Pode ser que, a longo prazo, tenhamos outra atitude em relação ao trabalho, especialmente nas economias nacionais desenvolvidas com a tendência da redução da jornada de trabalho, mais pessoas poderiam encontrar mais tempo para a prática da boa vizinhança, para o trabalho voluntário em associações e também para os cuidados de manutenção das cidades, para a preservação e incentivo da cultura e da arte, mas também mais tempo para o trabalho próprio. Esta seria uma sociedade com uma coesão interna maior que a atual; uma sociedade na qual o espírito comunitário e a solidariedade teriam outra vez uma posição destacada. Trata-se da flexibilização e da pluralização do trabalho e da jornada de trabalho.
- Depois da intervenção da Otan em Kosovo, estaria havendo uma passagem da noção clássica de direito internacional dos Estados para um direito da sociedade civil mundial? Uma vez que a democracia perde em peso - quando pensamos do ponto de vista estritamente demográfico -, quais as alternativas à vista?
- A tensão entre a soberania e a comunidade que sentimos na Europa desenvolve-se também em nível global. Já é, por exemplo, a Carta das Nações Unidas um contexto de ação da comunidade internacional, o qual poderíamos tratar como uma Constituição mundial? Ou quais contextos de ordem política seriam imagináveis para a "sociedade mundial"? Essas questões ainda são muito controversas. No seu relatório à Comissão dos Direitos Humanos, Kofi Annan teve a coragem de afirmar que se está desenvolvendo paulatinamente uma norma universal contra a repressão violenta das minorias, a qual deve ter e terá prioridade sobre o preocupado resguardo da soberania nacional. Quando o secretário geral das Nações Unidas fala desta maneira, isto é um indício de que estamos fazendo progressos. A ONU precisa ter capacidade de ação. Ela não pode ficar paralisada pela invocação da da soberania nacional por parte dos violadores de direitos humanos. Isto não significa que poderemos abrir mão dos Estados nacionais dentro de prazo previsível. Sem um Estado forte não é possível uma proteção interna contra a violência entre as pessoas a nível nacional. Também a proteção dos direitos humanos exige que o Estado seja mais do que um "guarda-noturno". Também nas políticas econômica, social, judicial e educacional existem amplos setores nos quais os Estados nacionais têm de assumir a sua responsabilidade, pois os mercados e os fluxos de informação são globalizados e nós nos vemos confrontados com os riscos de segurança transnacionais.
- Dez anos depois da reunificação alemã terá lugar, pela primeira vez, uma exposição universal em solo alemão. Hanôver desenvolverá uma nova idéia de exposição, na qual o conceito de desenvolvimento sustentável será tratado. Entre a Conferência da ONU no Rio de Janeiro em 1992 e a de Hanôver, quais são as respostas aos desafios globais que poderão ser encontradas na Expo 2000?
- Sob o lema "Homem, natureza, técnica: Surge um novo mundo", serão apresentados conceitos, idéias e visões para o convívio futuro das pessoas. Nós nos encontramos em plena transformação da sociedade industrial do tipo antigo numa era que é marcada cada vez mais pela informação e a comunicação, e que traz consigo revoluções enormes. Se ligarmos a inovação técnica e o dinamismo econômico à vontade e à capacidade de configuração política, poderemos aproveitar as chances da transformação para criar uma sociedade mais filantrópica. O mundo olhará para a Alemanha com curiosidade, para ver que a Alemanha surgiu no coração da Europa, dez anos depois da reunificação. Para nós, esta é a oportunidade de mostrar como poderemos engajar nosso país no convívio dos povos e que idéias e propostas de solução temos para os problemas do século que se inicia.
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José Galisi Filho é bolsista da Coornação de Aperfeiçoamento de Pessoal, Capes
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