Princesa Lagartixa*. — São justamente as mulheres que carecem de fantasia que a inflamam. O nimbo que reluz com maior colorido é o que envolve aquelas que, inteiramente voltadas para o exterior, são as mais sóbrias. Sua atração decorre da falta de consciência de si mesmas e, até, de um Eu pura e simplesmente:
Oscar Wilde inventou para elas o nome de esfinges sem enigma. Elas assemelham-se à imagem determinada para elas: quanto mais pura aparência são, protegidas de qualquer impulso próprio, tanto mais se parecem com arquétipos: Preziosa, Peregrina, Albertine**, que sugerem que toda individuação não passa de mera aparência e que não cessam, todavia, de decepcionar pelo que são.
Suas vidas são concebidas como ilustrações ou como uma perpétua festa infantil, embora semelhante percepção não faça justiça às suas pobres existências empíricas. Storm*** abordou isso na misteriosa história infantil Pole de Poppenspãler.
O jovem frísio apaixona-se pela menina, filha dos ambulantes provenientes da Baviera. "Quando finalmente me voltei, vi um vestidinho vermelho vindo em minha direção e veja só, veja só, era a menina das marionetes; a despeito de suas vestes surradas, ela pareceu-me envolvida por uma aura de conto de fadas.
Tomei coragem e disse a ela: 'Queres dar um passeio, Lisinha?'. Ela olhou-me desconfiada com seus olhos negros. 'Um passeio?', repetiu ela devagar. 'Ora, ora! Que sabidinho tu és!'. 'Aonde queres ir então?'. 'À loja de retalhos!'. 'Queres comprar um vestido novo?', perguntei um tanto atrapalhado. Ela deu uma gargalhada. 'Ora! Que idéia! — Não, só uns trapos!'. 'Trapos, Lisinha?'. 'Claro! Apenas alguns pedacinhos de pano para as roupas das bonecas; eles nunca são caros!'".
A pobreza fazia com que Lisinha se acomodasse com a mesquinhez — "trapos" — embora ela preferisse que as coisas fossem de outro modo. Incapaz de compreender, ela não pode senão desconfiar, como uma excentricidade, de tudo que não tenha uma justificação prática.
A fantasia ofende a pobreza. Pois as coisas mesquinhas só possuem encanto para o espectador. E não obstante a fantasia necessita da pobreza a que faz violência: a felicidade que ela persegue está inscrita nos traços do sofrimento.
É assim que a Justine, de Sade, que sai de uma armadilha da tortura para cair em outra, é chamada de notre interessante héroine, e do mesmo modo Mignon****, no momento em que é espancada, é chamada de criança interessante.
A princesa dos sonhos e a rapariga que é bode expiatório são a mesma pessoa e ela nem suspeita disso. Ainda há vestígios disso na relação dos povos nórdicos com os meridionais: os puritanos abastados buscam em vão nas moças morenas das terras estranhas aquilo que o curso do mundo, que eles comandam, recusa não somente a eles, mas sobretudo aos vagantes.
O sedentário inveja a vida nômade, a busca de pastos verdejantes, e a carruagem verde é a casa sobre rodas, cujo curso acompanha as estrelas.
A infantilidade, que se deixa prender num movimento gratuito, na ânsia desgraçadamente inconstante e momentânea de continuar a viver, assume a defesa do não desfigurado, da realização e, no entanto, a exclui, pois no fundo se assemelha à autoconservação da qual promete falsamente libertar.
Tal é o círculo da nostalgia burguesa de ingenuidade. A frieza desalmada daqueles a quem, à margem da cultura, o quotidiano proíbe a autodeterminação — ao mesmo tempo garbo e sofrimento — transforma-se na fantasmagoria da alma para os bem situados, que aprenderam com a cultura a se envergonhar da alma.
O amor se entrega à frieza desalmada como a um símbolo do que tem alma, porque os viventes são para ele o teatro do desejo desesperado de salvar, que só tem por objeto o que está perdido: o amor só descobre a alma onde ela está ausente.
Assim, humana é justamente a expressão dos olhos que mais lembram os dos animais, das criaturas distantes da reflexão do Eu. No fim das contas, a própria alma é, para quem é privado de alma, uma nostalgia de salvação.
*Conto do folclore alemão que narra a história de uma princesa que se divertia atormentando os animais. Surpreendida ao cortar o rabinho de uma lagartixa, ela se vê transformada ela própria numa lagartixa e só consegue se livrar desse encanto quando tem a própria cauda cortada. (N. do T.)
**Preziosa é o nome da heroína de uma peça do mesmo nome de P. A. Wolff, musicada por Carl Maria von Weber. Peregrina é o tema de poemas de amor, incluídos no romance Maler Nolten de Eduard Moericke, e Albertine, personagem de A la recherche du temps perdu de Proust. (N. do T.)
***Paulo Titereiro (o artista que move os bonecos de engonço, no teatro de fantoches ou títeres), obra (1874) de Theodor Storm (1817-1888). (N. do T.)
**** Personagem de Wilhelm Meister Lehrjahre, de Goethe (N. do T.)
Theodor W. Adorno. "Minima Moralia: Reflexões a partir da vida danificada". Tradução de Luiz Eduardo Bicca e Revisão de Guido de Almeida. São Paulo, Ática, 1992, p. 148-49.
Friday, 27 January 2012
Princesa Lagartixa - Minima Moralia - Theodor W. Adorno
Posted on 00:37 by Unknown
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