Tuesday, 6 December 2011
O Teatro como Totalidade - Entrevista com o Diretor Peter Stein sobre a encenação integral do "Faust", de Goethe, com Bruno Ganz*
Posted on 23:57 by Unknown
Jose Galisi Filho especial para a Bravo!, de Hannover
Para o diretor alemão Peter Stein nascido em Berlim, em 1937, o teatro não é apenas um belo anacronismo, o museu nostálgico de uma representação imediata do real, perdido na selva visual ambiente, diante da qual é um pálido reflexo e se evapora como miragem. O brilho da cena de Stein vem de uma outra constelação: ele celebra a soberania da palavra encarnada no ator. O teatro, para Stein, realiza-se no limite entre sua evidência sensível e aquele espaço centrífugo em que a reflexividade dos textos promove uma rotação permanente de sentidos e da própria cena. Esta reflexividade remonta à própria origem da tradição dramatúrgica alemã, que nasceu junto com a nova língua filosófica do idealismo. Vale para Stein a máxima de Goethe: a luz não vê, mas ilumina. Trata-se de um olhar absoluto e de um teatro que se pretende por absoluto, num
mergulho vertical em sua história. Diante destas complicadas arquiteturas que chamamos de clássicos, Stein opera com paciência, burilando cada detalhe e investindo contra as obscuridades deixadas pelos maus hábitos de leitura. Pois se Stein entende seu "métier" como um artesanato sensorial constante, o resultado é uma espécie de instabilidade criadora permanente, que nunca basta a si mesma. Neste sentido, aquele empreendimento e a "reforma" do aparato teatral, como é pensada por Goethe no início de seu “Fausto II”, assume para Stein um valor programático: o teatro, como esboço, não desaparece em sua realização; nele, inscreve-se um gesto de inacabamento que se projeta sobre o futuro e é a garantia de sua tradição. Avesso aos efeitos fáceis - e à própria idéia de diversão como "show" e entretenimento -, seu estilo de direção deseja sempre uma espécie de tradução exata em cena do sentido de um texto; Seu contato com os atores lembra muitas vezes a execução de uma partitura musical. Freqüentemente em seus ensaios fala ao mesmo tempo que os atores, e sua capacidade em parafrasear as camadas de um texto cria freqüentemente a metáforas cênicas que organizam o pensamento do conjunto de seu "Ensemble": "Apenas eu sou tradutor da peça. Queria que os atores dominassem o sentido e nunca a forma", assim Stein define sua prerrogativa de diretor, que exige que seus atores dominem este "sentido", para que desempenhem corretamente sua partitura no pormenor, pois é somente a partir deste que se sabe o todo. E o todo se volta sempre sobre este pormenor.
De todos os grandes diretores contemporâneos, ele é, sem, dúvida aquele que mais próximo está de um teatro literário, mas Stein não entende a literatura como recitação, mas como uma virtualidade dramatúrgica que emerge da espacialiadade que cada texto projeta para si no horizonte de sua recepção. Pois é o presente que recria a cada instante esta tradição.
Esta familiaridade com a mediação conceitual tem um fundamento biográfico. Peter Stein estudou Germanística e História da Arte em Frankfurt e posteriormente em Munique, onde começou sua carreira como assistente do Kammerspielen de Munique, em 1964. A notoriedade e o escândalo chegariam em sua adaptação de "Torquarto Tasso", no Teatro de Bremen, em 1969, protagonizada por Bruno Ganz ("As Asas do Desejo"), uma efígie de cunho autobiográfico de Goethe. O "Tasso" de Stein definia-se como o "palhaço sentimental da corte", uma metáfora de sua servilidade financeira ao príncipe e da inútil beleza de sua lírica.
Mas seria somente na década seguinte que o talento dramatúrgico de Stein encontraria seu espaço ideal na recriação da Schaubühne berlinense, cuja intendência assumiria em 1970, uma experiência inicialmente inspirada no trabalho coletivo, como conseqüência estética e nstitucional do refluxo pós-68. Foi na Schaubühne em meados do setenta, em parceria com Botho Strauss, ex-redator da "Theater Heute" e com o encenador Karl-Ernst Hermann, conhecidos como o trio, que amadurecerá finalmente seu estilo nas encenações de "A Trilogia do Reencontro", em 1977, e "Grande e Pequeno", em 1978, ambos os textos de Strauss.
Em "Grande e Pequeno", a atriz Edith Clever encarnava o drama de estações de Lotte, uma mulher da média que começava sua descida ao inferno de gelo do coração alemão, num percurso no labirinto de sua inércia espiritual no fim dos setenta, espelho de seu narcisismo e egoísmo, mas sobretudo da irrelevância crescente do homem diante de uma paisagem simbólica na qual desaparece sem deixar vestígios. A plasticidade do hiperrealismo cênico de Strauss ganhava uma pureza romântica no contraste entre o realismo psicológico da representação da esquizofrenia crescente Lotte e a diluição dos contornos da realidade à sua volta num movimento geomêtrico vertiginoso entre as duas escalas do micro e do macrouniverso, um mundo ao mesmo tempo preciso e difuso. Este foi também um dos papéis mais expressivos de Renata Sorah, na adaptação brasileira do texto sob a direção de Celso Nunes em 1985, com cenografia e Hélio Eichenbauer.
Em meados dos oitenta este realismo psicológico, quase um minimalismo da paixão, ganharia sua forma definitiva na adaptação russa de Tchekhov de "As Três Irmãs" (1984). Para historicizar os mecanismos desmontagem da personalidade pequeno-burguesa, Stein projetava uma forma de teatro absoluto, na reconstrução de toda uma superfície de época, em que nenhum detalhe escapava à gravidade da ação dramática. O resultado dessa segmentação cinematográfica da cena, hipertrofiada nos cenários de Hermann, desenvolvia a ilusão de realismo cênico tão poderoso que parecia, no limite, apagar a própria direção. Para muitos críticos, a nostalgia por este universo significa a museificação do teatro com a auto-complacência do espectador. A precisão desta jóia cênica tornou-se também um fetiche dramatúrgico que o projetou finalmente para fora do universo do teatro de língua alemã. Já em 1976 Stein debutara na Ópera de Paris com o "Ouro do Reno", de Wagner, que se seguiria a "Othello" (1986), "Falstaff" (1988) e "Pélleas e Mélisande", de Débussy, na Welsh National Opera de Cardiff. Em 1989 encenaria “Roberto Zucco” de Koltès e em 1991 assume a direção do festival de Salzburg sob a intendência de Gérard Mortier, no qual permanecerá até 1997.
Foi o desafio da montagem integral de "Fausto" que colocou Stein sempre em rota de colisão com instituições e suas personalidades. O projeto de uma adaptação integral do poema, que já o acompanhava desde a Schaubühne, rompia com qualquer parâmetro institucional e exigia uma engenharia financeira que somente seria possível num evento na escala de uma Exposição Universal, que a Alemanha realizará pela primeira vez em Hannover entre 1 de junho e 31 de outubro próximos. Esta convergência de interesses deu-se em 1997 com a criação da sociedade civil "Faust Ensemble", que mobilizou trinta milhões de marcos ao longo de três anos para esta montagem. Stein aproxima-se de realizar um espetáculo que irá durar dois dias e tera dezessete horas, tendo Bruno Ganz mais uma vez como protagonista. O "Fausto" integral de Stein prometer ser também um dos pioneiros do continente das novas tecnologias virtuais, deslocando o eixo da tragédia para a segunda parte da peça, na qual Goethe ensaia um processo de construção e destruição permanente do teatro.
Stein recebeu a Bravo! para esta entrevista exclusiva na sede do "Faust Ensemble" em Hannover, Baixa Saxônia, no dia 27 de janeiro de 2000.
Bravo – “A linguagem é o nosso pão; a linguagem é nossa vida; através dela, tornamo-nos homens”, o Sr. afirmou certa vez. Na busca do corpo das palavras, o seu teatro assume uma atitude frontal com o texto literário. Quais são os limites e as condições da auto-reflexão da cena?
Peter Stein - Fui para o teatro, porque sempre me interessei pela literatura. Porém, sempre procurei extrair da literatura aqueles textos que haviam sido escritos para o teatro. O teatro europeu é basicamente um teatro literário. Esta é sua qualidade especial, esta relação orgânica com a gravidade literária em torno da qual orbita, de uma maneira tal, que este vínculo determina uma tradição interna e auto-engendrada, baseada na interpretação de textos. Este é seu ponto de força e não uma tradição mais próxima da oralidade, de professores para aprendizes, de atores-mestres para atores-aprendizes, como é, por exemplo, o caso da tradição japonesa, na qual predomina esta oralidade, uma relação direta entre mestres e aprendizes, que pressupõe, inclusive, uma noção distinta da memória destes textos. Em nosso caso, no teatro europeu, temos como garantia da tradição esta recepção específica do texto literário transmitido: o momento em que a palavra literária ganha corpo como encenação. Também é certo que entre o jogo cênico e o texto literário existe um conflito, mas este conflito é a própria base desta tradição, que já remonta à própria tragédia grega. Sou alguém que se interessa, como lhe disse, por esta qualidade literária do teatro pela qual trabalho, tentando projetá-la até o limite para o centro de minha cena. Não sei se isto facilita minha tarefa, pois filtrar o elemento vivo de um texto da tradição é o grande problema do teatro, já que é ainda mais difícil reativar textos desta tradição através dos meios técnicos de nosso presente, sem deslizar no anacronismo, de maneira que possamos estabelecer uma relação produtiva com seu sentido, isto é, pois existe sempre o risco de que estes textos literários pareçam muitas vezes mortos para o teatro, ou apenas como textos recitativos que aparentemente não têm uma qualidade dramatúrgica intrínseca.
Bravo - Ao longo de trinta anos, o Sr. vem perseguindo o núcleo da obra goethiana, que o próprio Goethe denominou como “incomensurável”: o “Fausto II”. Esta aproximação amadurece agora na encenação integral dos dois Faustos, que estreará durante a Exposição Universal em Hannover, em agosto. Enquanto Goethe a escrevia, Hegel cimentava as categorias fundamentais do mundo moderno, sobretudo a de superação, na qual a forma da subjetividade também se torna “incomensurável” pelas infinitas mediações do concreto. Poderíamos dizer, então, que sua encenação seria a superação, ou “suspensão” hegeliana deste empenho individual, já que o Sr. vem definindo o núcleo da tragédia como a forma do "imperialismo da subjetividade moderna". O que significa exatamente isto?
Peter Stein - Bem, esta é uma história muito longa, com a qual me ocupo, de fato, já há muito tempo e também bastante infrutífera e frustrante. Desde que me vi na posição, ou me imaginei na posição de ler este texto e de compreendê-lo, e falo especificamente do “Fausto II”, pois o “Fausto I” não oferece esta mesma resistência interpretativa, “Fausto I” é uma peça absolutamente concebível e, na minha concepção, a verdadeira obra é o “Fausto II”, já que ele é duas vezes maior que o primeiro, produto de um autor maduro de sessenta anos, enquanto o “Fausto I” é uma obra de juventude, completamente inacabada e imatura. Esta dificuldade me conduziu, num certo momento, ao empenho de encená-la, numa tentativa de superá-la, mas não penso numa superação “hegeliana” deste objeto, trata-se antes, na verdade, daquele empenho no sentido que Goethe mesmo inscreveu no Fausto I, uma empenho que já traz em si a semente de seu fracasso necessário e, neste sentido, de sua superação. Goethe concebeu seu texto, como você mesmo o disse, de uma maneira “incomensurável”, e esta incomensurabilidade deve atingir todas as suas partes e ser preservada, como no instante em que Fausto pede que o fluxo do tempo se interrompa (“Pare, pois é tão belo”), ou seja, trata-se da suspensão e conservação deste núcleo do tempo e não de sua superação. Não obstante, esta incomensurabilidade foi tecida por Goethe de uma maneira quase onírica, tal como a partitura de Mozart de “Don Giovanni”, com poucas exceções em sua estrutura. Esta analogia evidente é comprovada, sobretudo, na pesquisa mais recente dos últimos dez e quinze anos, que ganhou um impulso notável, o que mostra haver um sintonia entre o sentimento de nossa virada de século e este material, como não existia nos anos setenta, por exemplo. Esta congruência favorável também tornou possível esta aproximação final. Geralmente é assim, existem grandes correntes nas quais as pessoas de teatro se engajam e, neste caso, com o “Fausto II” aproveitamos-nos, como no “surf”, desta “onda”. Neste sentido, também, nunca vamos à profundidade, mas permanecemos sobre esta massa fluida que são os textos literários no seu movimento. Esta é uma característica essencial das pessoas de teatro. Desta forma, acredito, este empenho calculado não corre o risco de estragar essencialmente este texto em sua incomensurabilidade. A própria maneira pela qual os dois “Faustos” serão encenados será marcada por esta incomensurabilidade e inacabamento. O que me irrita de fato bastante - e este talvez seja o meu único mérito -, é que não houve até agora nenhuma tentativa séria de levar a cabo esta incomensuralididade a partir dos próprios meios que a obra oferece, e fundamental é a preservação de sua qualidade poética, desde que ela não apareça como pura literatura, mas amadurecida em sua qualidade dramatúrgica. Este é o problema essencial.
Bravo - O Sr. se define basicamente como um dramaturgo do espaço e pretende desenvolver nesta paisagem literária do “Fausto II” todas as metáforas cênicas de um texto que, segundo sua dramaturgia, encerra também quase todas metamorfoses da história do teatro no Ocidente. De que maneira isto será alcançado? E o que significa o principio da "verticalidade" que vai organizar sua arquitetura cênica? O Sr. estaria se conduzindo por uma direção virtual do próprio Goethe?
Peter Stein - Em primeiro lugar, esta assim chamada “verticalidade” foi formulada de maneira mais ou menos banal por Goethe já no “Prólogo do Teatro”, no “Fausto I”. O diretor do teatro, o promotor e gerenciador financeiro do espetáculo, sente que a “multidão”, em busca de diversão barata e espetacular, movimenta-se do céu para o inferno. Existe, portanto, um eixo vertical que deve ser entendido como ponto de fuga do espaço cênico na sua estruturação imanente. O céu é a iluminação, a terra é o palco e o inferno é a subcena. Esta é uma rubrica dramatúrgica do diretor Goethe e não um filosofema e nem tampouco um espelhamento da topografia religiosa cristã! Preste atenção, esta metáfora é uma metáfora cênica, ou seja, refere-se à espacialidade primária que o texto projeta para si. São metáforas que falam do maquinário cênico em sua dinâmica que produz ilusões. Portanto, apesar de banal, ela foi tomada a sério por Goethe, ou seja, ela implica uma rotação própria da cena, cada dramaturgia exige um determinado espaço. Dramaturgia significa um teatro, a organização do curso da ação, de seu transcurso, ou o que se segue a quê. Esta ação exige um sistema de coordenadas espaço-temporais. Temos, então, de criar o espaço para o transcurso temporal da ação. Isto é uma banalidade, e sequer é preciso ter lido a “Poética” de Aristóteles para saber o que significa a unidade do “mythos”, mas a maioria parece não levá-la em conta e cria uma espaço cênico arbitrário no qual projetam sua peça e suas figuras sem consistência. Este não é o meu método. Procuro descobrir o espaço e construí-lo de maneira necessária para uma certa dramaturgia, na qual a intenção do autor possa estar mais ou menos organizada.
Bravo - Mas o sentido objetivo de uma obra literária não seria a morte da intenção original do autor, ou seja, ele não pode coincidir com uma forma de direção, digamos, “virtual” do diretor Goethe, que rege a encenação do presente.
Peter Stein - Não entendo desta forma, penso em algo bem banal. Não tenho este sentimento filosófico de um Walter Benjamim. Para isto, não disponho de um órgão e sou muito burro. Posso apenas dizer, de maneira bastante trivial, que Goethe organizou sua arquitetura cênica de tal maneira que simplesmente não podemos ver o que está em primeiro plano e a procedência destas figuras. Estas figuras emergem do vale. Então, nós a vemos no plano da cena, para desaparecerem logo a seguir em movimento ascensional, onde também não a podemos ver. Trata-se, portanto, de uma zona intermediária. Isto vale para duas cenas e, de fato, duas cenas decisivas. A cena romântica da “Noite das Valpúrgias” e a outra é a cena do “Castelo da Montanha”, a última. A primeira descreve o movimento para cima, para Satã, e a outra descreve o movimento ascensional para Deus. Em ambos os casos, o objetivo não parece muito claro e nem tampouco a procedência deste movimento. Acho esta rubrica dramatúrgica bastante concreta e significativa, de modo que o espectador possa ver este movimento e assim compreender o texto. Ora, mas naquela intenção original de Goethe na configuração de sua obra e para seus leitores futuros encerra-se também, de fato, um momento essencial de morte, que deve ser interpretado. Sou alguém que apenas tenta levar esta tradição adiante a partir da qualidade teatral que lhe é subjacente, questioná-la na raiz, e somente então traduzi-la espacialmente como dramaturgia. Desejo, sobretudo, realizar esta qualidade literária de maneira cênica clara e precisa, ou seja, compreensível em sua evidência mesma, a saber, que se trata não apenas de uma obra literária, mas de uma obra dramatúrgica, na qual se proliferam elementos poéticos, mas o decisivo é que ela foi pensada por Goethe dramaturgicamente. Com base nisto, pretendo provar e mostrar que esta obra o “Fausto II”, que é extremamente difícil de ser lida evidentemente – bem, para mim ela oferece enormes dificuldades interpretativas -, é uma síntese da dramaturgia contemporânea em todas as metaformoses de sua arquitetura cênica. Isto você irá ver. Não sei se irei destruir a peça com este procedimento.
Bravo - De que maneira o Sr. pretende traduzir a leveza do jâmbico para um público de massa. Será possível ouvi-lo bem?
Peter Stein - Não se trata de uma massa, mas de aproximadamente cinco mil espectadores, distribuídos em grupos de até quatrocentos e cinqüenta pessoas, que estarão distribuídos em várias espaços e que terão tempo bastante para investir durante os dois dias que irá durar a apresentação. São pessoas movidas por um interesse especial, elas já estarão filtradas de antemão, pois têm interesse em Goethe, no teatro ou neste evento. Trata-se de pessoas esclarecidas que apresentam, portanto, certas pré-condições intelectuais para interagir com esta cena, não obstante, devo dizer que isto não elimina alguns falsos pressupostos que obliteram uma interpretação correta. Por exemplo, um falso pressuposto do que Goethe deva ser de antemão, do que deva ser um “Fausto II”. Pois este “preconceito” necessário, a saber, o que seja este sentido é péssimo, pois faz com que as pessoas acabem engolindo aquilo que sequer conhecem, sem elaboração. Acredito que, se encenarmos os dois “Faustos” de maneira correta, então as pessoas não reconhecerão Goethe em ambos e irão se surpreender com o resultado final. Nas encenações do “Fausto I”, por exemplo, ou se amputa metade do texto, ou o texto muitas vezes é apenas recitado de maneira acelerada, como se os atores procurassem se desincumbir o mais rapidamente desta massa poética, tornando-se um blablabla incompreensível, no qual não se articulam as falas como se elas fosses pensadas pelo ator. Ou pode ocorrer também que se projetem no texto fantasias individuais, sexuais, patologias e obsessões, obliterando completamente o entendimento desta articulação poética. Isto não irá ocorrer de forma alguma nesta encenação. Procuraremos, a partir dos conhecimentos atuais já acumulados na filologia, na história da arte e sobretudo na história das encenações do “Fausto” nestes últimos cento e cinqüenta anos traduzi-lo para o presente e achar a mediação adequada sob o mote de que nenhum detalhe deve escapar ao esclarecimento de todos.
Bravo - Trinta milhões estão em jogo nesta obra de arte total. Isto é mais que alguns orçamentos dos países africanos mais pobres. É o maior projeto teatral das últimas décadas e ele está além da gravidade do mercado, portanto, imune também ao fracasso estético. Como está estruturado este orçamento.
Peter Stein - Gostaria de contradizê-lo expressamente. Não, em absoluto, o risco do fracasso estético inscreve-se em qualquer empreitada desta natureza. Mas sua pergunta é basicamente sobre os princípios administrativos. Estes trinta milhões foram possíveis a partir da constituição de uma sociedade civil chamada “Faust Ensemble” para o trabalho de três anos consecutivos, o que já significa, então, um orçamento de dez milhões de marcos por ano. Apenas o teatro estatal da cidade de Tübingen dispõe de um orçamento superior a este soma de dez milhões anuais. O que é então exorbitante nisso? Nós, pelo contrário, somos, na verdade, extremamente baratos quando comparados apenas aos teatros estatais de Tübingen ou Saarbrücken. Nenhum destes teatros paga aluguel. Eu tenho de pagar aluguel. Eles têm um palco de ensaios, não precisam pagar por este espaço, ao contrário do “Faust Ensemble”. Os teatros estatais dispõem de fundos públicos, estão aparelhados com todos os recursos técnicos necessários, cadeiras nas quais as pessoas possam se acomodar. Você está vendo uma cadeira neste galpão? Tudo o que você esta vendo neste galpão foi comprado. Isto foi comprado, este traje foi alugado de uma loja. Este é um tapete até bastante ordinário, mas eu o comprei. Ele custou vinte marcos. Este papéis. Estes desenhos dos trajes foram todos pagos. Nada do que existe deste a porta lá na rua até este galpão deixou de ser comprado por este Ensemble, pagando todos os impostos. Se você deduzir aquilo que os teatros normais têm, então, na verdade, este orçamento cai agora pela metade, para cinco milhões de marcos. Um orçamento de cinco milhões de marcos. Mas nós não estamos na África. Aqui, na Alemanha, um principiante recém-formado, como muitos que trabalham neste Ensemble, tem como piso salarial entre dois mil e quinhentos e três mil marcos por mês. Um aprendiz. Então faça, por favor, simplesmente esta conta de somar. Oitenta funcionários trabalham neste Ensemble. Os teatros estatais dispõem sempre de um mínimo inercial para a produção. Você tem de partir do pressuposto de que neste tempo em que este Ensemble irá encenar o Fausto haverá seis apresentações na Expo 2000, depois uma temporada em Berlim e, finalmente, em Viena. Tenho três outras encenações em curso no momento. Uma chama-se “Demétrios” e há também um outro texto de Hórvath que estamos ensaiando. Com pelo menos mais três outras que haverá no ano que vem, talvez cheguemos então a dez. Faça uma divisão simples para saber quanto cada uma destas produções terá custado. Para cada uma dessas encenações será muito pouco. Deste total, acrescente-se a receita da bilheteria, oito milhões e o resto divide-se entre os cooprodutores privados. Apenas a soma de sete milhões e meio de marcos é da receita tributária, portanto, dinheiro do Estado da Baixa Saxônia. O restante ganhamos nós mesmos ou é produto de nossos patrocinadores. Este é um modo novo de gerenciamento que nenhum dos outros teatros quer se arriscar a fazer como a Schaubühne, ou o Berliner Ensemble, produtos autênticos da cultura de subvenção estatal. Tivemos a coragem de nos arriscar a este empreendimento. E conseqüentemente devo lhe dizer também expressamente: esta encenação tem o direito absoluto de fracassar e não se furta a ele. Parto do pressuposto de que este “fracasso” emprestaria mais beleza à empreitada. Não posso pretender me arriscar numa obra incomensurável e excluir o horizonte do fracasso. Não, o fracasso se inscreve em tudo que diz respeito à matéria de Fausto, trata-se de um fracasso “calculado”. A qualidade de Fausto como empreendedor é seu fracasso, como você sabe.
Bravo - A sua montagem de "Torquarto Tasso", em 1969, em Bremen, é considerada uma ruptura simbólica com este mecenato estatal da tradição alemã, ao mesmo tempo metáfora da impotência da arte diante do mercado e de sua necessidade vital por subsídios. Sr. definia seu “Tasso”, desempenhado pelo Bruno Ganz, como um "palhaço sentimental" da corte e Botho Strauss, então resenhista da “Theater Heute”, afirmava que o teatro era um luxo e um “belo anacronismo”. O que o seu "Fausto" critica em relação ao "Tasso" de antes? Uma das premissas desta crítica é a possibilidade do fracasso e hoje trata-se menos do fracasso do que da administração do aparelho cultural.
Peter Stein - Eu tinha apenas vinte e três anos e muito pouca experiência em teatro. Em conseqüência, cometi uma série de erros, que se cometem com a desculpa charmosa, mas nunca convincente, de ser jovem. Estes erros provinham de uma apropriação apressada da autoreferencialidade de fundo autobiográfico do próprio texto, um texto que fala do próprio teatro. Tentei fazer esta aproximação da maneira mais produtiva possível, mas vista retrospectivamente, não era muito inteligente. Mas realizei também outros trabalhos que projetavam esta autoreferencialidade da cena em primeiro plano. E, de fato, é preciso, passar pelo caminho ilusório deste espelhamento narcísico para atingir o núcleo verdadeiro do teatro. Aquela encenação, contudo, no que diz respeito a este “fracasso” a que você alude, estava inteiramente resguardada num teatro estatal em Bremen, uma encenação muito mais segura quando a comparamos às condições de hoje, em que estas posições não estão mais nem de longe garantidas pelos mais variados motivos. No que diz respeito à idéia de administração do aparelho, diria que eu a Vera Neuroth administramos este “Ensemble”, mas este aspecto aparece sempre subordinado às questões estéticas a que ele se propõe. Não temos sequer um contador, como numa firma. O que é decisivo para mim é que criamos um teatro independente de qualquer estrutura prévia e no momento em que esta sociedade tiver de ser dissolvida não significará nenhum problema para nós, pois nossa identidade não é administrativa, mas estética Eu me afastei há muito tempo completamente do teatro alemão. Não sou mais há muito tempo parte desta paisagem. Não moro mais na Alemanha, desde 1990 não trabalho mais na Alemanha. Esta é a primeira vez em dez anos que volto para cá e apenas em função de querer realizar este projeto. Sou muito persistente em meus objetivos. Já começara uma vez a trabalhar com este “Fausto” na Schaubühne, que eu mesma criara, e quando me demitiram de lá, quando fui posto para fora, de fato, você pode imaginar o que senti, já que começara a trabalhar nesta peça. Por esta razão estou aqui sozinho. Não preciso esmolar o dinheiro dos contribuintes alemães, portanto, estou autorizado a fazer esta crítica.
Bravo - A sua parceria com Botho Strauss é uma das mais fecundas da história do teatro alemão, durante a qual veio à luz “A Trilogia do Reencontro”, “Grande e Pequeno” na Schaubühne, como um negativo daquela paisagem espiritual dos fim dos setenta, sinalizando também para o fim de linha de uma geração pós-68. O Sr. dizia na época que a "melancolia era uma força revolucionária", mas a evolução posterior de Strauss levou-o para o velho solo da crítica conservadora romântica. Como o Sr. avalia hoje aquele momento em vista, por exemplo, deste caminho trilhado por Strauss, que se estende a toda uma outra geração de artistas que hoje reabilitam as figuras do conservadorismo cultural?
Peter Stein - Só me pergunto apenas o que deve ser entendido como “conservadorismo cultural romântico” nesta pergunta. Acredito que quando não mais exista nenhuma força de persistência numa paisagem cultural, então ela se esvazia completamente de sentido. Quando nela também não existe um diferencial utópico de subversão, ela também é uma paisagem vazia e desinteressante. Apenas, quando estas energias subterrâneas são incapazes, no entanto, de movimenta-lá, de produzir uma autocrítica, o que geralmente também custa o imposto dos contribuintes, digamos, subvenções revolucionárias, então, estamos diante de um horizonte espiritual sem redenção, que não tem mais absolutamente nada a ver com a força da cultura viva. Por isso, vejo de maneira positiva este assim chamado conservadorismo cultural, entendido aqui como uma força de preservação quase orgânica da memória da tradição, na medida em que a dor e a capacidade de sofrimento ainda se mantenham na paisagem teatral, de modo que não haja compromisso ou concessões, e um destes compromissos centrais é de que o ator esteja no centro da cena e possa interagir com os espectadores. Foi exatamente o que tentei fazer na minha experiência com a Schaubühne. Como podemos nos entender e ampliar esta capacidade recíproca para o diálogo e para o afeto. Era um processo na verdade de auto-esclarecimento, mas, no que diz respeito ao meu depoimento sobre Botho Strauss, diria que, quando tomamos seu desenvolvimento, temos de constatar que desde a sua primeira peça até a ultima, que acabei de encenar, “Die “Ähnlichen”, que seu impulso fundamental permanece idêntico, ele permanece igual e fiel a si mesmo, enquanto a paisagem em torno dele se modifica. E aquilo que Strauss já apontava nesta mudança, que é o núcleo sempre igual e mítico de nossa experiência, é o crescente desaparecimento do homem na paisagem, a virtualização do homem diante da paisagem. Aquele agigantamento da floresta de símbolos continuou e os homens tendem a desaparecer na paisagem em sua pequenez. Vou aproveitar este gancho e retomar a questão da virtualidade no teatro, uma questão que nos coloca cada vez mais em dificuldades. No conjunto, o fato de que as pessoas tenham cada vez mais que se relacionar com a virtualidade, cria uma séria dificuldade ao sujeito, que, ou acaba por se destruir, ou não se reconhecendo mais nesta paisagem e sua nova escala. Este fenômeno é extremamente complicado, sobretudo para as pessoas do teatro, que devem criar basicamente realidades virtuais em cena, não obstante, uma realidade que não é completamente virtual, pois, afinal, podemos alvejar atores com ovos da platéia, mas sempre foi assim, o teatro sempre procurou, na sua própria virtualidade, afirmar a soberania do ator, justamente criando estruturas que, a partir de sua realidade física, superem esta virtualidade da encenação como jogo, do teatro dentro do teatro, por exemplo. De fato, de alguns anos para cá, a pesquisa vem mostrando, com uma ênfase cada vez maior, que o problema essencial de Fausto é que ele é uma personagem que mergulha numa virtualização crescente de si mesmo, numa realidade que ele mesmo constrói e na qual desaparece. Fausto progressivamente confunde as fronteiras entre a realidade e o virtual, de fato, ambas as dimensões criam uma zona intermediária na qual a cena se desenrola dentro daquele princípio da verticalidade sobre o qual conversávamos no início, ou seja, Fausto mergulha na sua própria virtualidade que o destrói finalmente no fim do primeiro ato de Fausto II. O Fausto realiza uma encenação teatral, uma pantomima, que se chama Helena, que é uma fantasia retrospectiva sobre a Antigüidade, ou melhor, uma representação inteiramente artificial desta Antigüidade. Helena de repente é seqüestrada e Fausto pára em determinado momento e diz para si mesmo, bem, se Helena foi seqüestrada, então não pode mais haver uma encenação sem objeto. É como se houvesse neste momento uma explosão de nossos computadores e do “hardware” que produz a encenação, a ilusão de nosso mundo sensível, esse momento de curto circuito entre o virtual e a realidade ocorre a todo instante no “Fausto II”. Este tema vem sendo colocado ultimamente com ênfase na pesquisa, esta é a modernidade de “Fausto” e também o sentido do seu fracasso no mundo contemporâneo.
Bravo – O Sr. conhece a encenação brasileira de “Grande e Pequeno”, sob direção de Celso Nunes, tendo Renata Sorah no papel de Lotte?
Peter Stein - Não, não a conheço, do Brasil conheço apenas o Grupo Macunaíma que nos visitou no início dos anos setenta. Depois voltamos a nos encontrar durante a encenação da “Orestíada” num festival em Caracas, na Venezuela, e lá estava novamente o Macunaíma, só que desta vez com uma outra formação. Tive também um outro encontro com o Brasil, de fato. Houve uma encenação dos “Convidados de Verão” entre 1974 e 1975, em meados dos setenta no Rio de Janeiro, baseada na minha encenação e de Botho Strauss.
Parece que foi um grande sucesso e teve uma longa temporada. Então nos disseram que não havíamos recebido ainda os direitos autorais. Lembro-me à época que me disseram: “Você não deveria cobrar diretos autorais de um país em desenvolvimento como o Brasil”. Então repliquei: “País em desenvolvimento, vírgula, vocês estão loucos? A encenação foi financiada pelo banco mais poderoso da América Latina”, banco que na época dava uma cobertura à ditadura dos generais. Escrevemos uma carta cobrando nossos direitos autorais, que eram até bastante expressivos entre cinqüenta e oitenta mil marcos. Então surgiu um outro problema, comprometeram-se a nos pagar, mas foram adiando progressivamente este pagamento, contando com o fato de que uma inflação de quinhentos porcento ao ano acabaria pulverizando aquela soma em oitenta marcos, que somente caíram em nossa conta no final dos anos setenta.
Bravo – Por onde andará a personagem Lotte de “Grande e Pequeno” depois de tantos desencontros?
Peter Stein - Bom, o que eu diria de Lotte? Continuou dormindo em latas de lixo, teve várias crises de “overdose”, foi para uma clínica de recuperação, toma ainda medicamentos bastante pesados, já está num asilo, mas lá conheceu um outro homem e vai muito bem.
Bravo – A sua “Orestíada” nos mostrava como o pode feminino poderia ser cenicamente travestido em masculinidade com toda as ambivalências. Como se dá esta dialética do Esclarecimento em seu teatro. Uma vez o Sr. afirmou em relação à tragédia grega: “Sem amor nada é possível, com o amor, é pior ainda, a existência humana é impossível. Numa era de cinismo, faz sentido ainda falar de “destino”. Será que no próximo século, “Édipo” não será uma comédia?
Peter Stein - Quando fiz esta formulação, tentei, na verdade, dizer como funcionava o pensamento na tragédia grega, não é uma idéia minha. Este pensamento da tragédia grega nasce conosco, ele é arquetípico. O pensamento de que talvez fosse melhor não ter nascido vem justamente de Sófocles, de que todo homem não deve perder de vista o pensamento sobre a morte. Então, para que que serve tudo? Talvez fosse melhor não ter nascido. Um pensamento sempre atual. Foi atual há três mil anos atrás, ainda é hoje e o será sempre, conseqüentemente, desde então, não houve grandes mudanças e hoje há uma variedade de fórmulas que distraem a consciência do pensamento da morte, de maneira a bani-lo. Há uma série de ocupações e atividades ou distrações, como diria Pascal, que nos afastam do pensamento sobre a morte, mas estas ocupações e atividades e distrações só nos deixam cada vez mais neuróticos e nervosos do que se desempenhássemos atividades racionais e, neste sentido, a possibilidade mesma de escrever uma nova tragédia como os gregos, dentro deste esquema de pensamento, é hoje impossível. Isto repousa no contraste entre a individualização, de um lado, deste total imperialismo da subjetividade, e por outro lado, do avanço da normativização crescente das condutas. Temos hoje o indivíduo isolado no seu aspecto mais negativo, quando falamos alguém é um sujeito, estamos dizendo exatamente: solidão absoluta. Mas é apenas quando estamos em nossa solidão que somos iguais aos seis bilhões de homens desta planeta. Não podemos, por assim dizer, usufruir bem da nossa individualidade sendo apenas um fator na massa, nos processos econômicos e sociais. Isso conduz evidentemente ao estreitamento crescente de nossa capacidade de expressão artística, ao fato de que as expressões artísticas refiram-se cada vez mais às partes isoladas do sistema global e daí também se origina o monstruoso processo de destruição coletiva. Neste sentido, realmente concordo com a sua colocação, de que a tragédia grega só possa ser pensada hoje como uma farsa, isto talvez possa ser até engraçado e prazeiroso para aqueles que se proponham a encená-las desta maneira, o que somente estreita ainda mais o horizonte de vida, pois as necessidades verdadeiras são cada vez menos preenchidas.
Bravo – Como o Sr. se posiciona diante de outras dramaturgias como Robert Wilson, Brook, para ficar no universo de língua inglesa, e Eugenio Barba e Patrick Chéreau?
Peter Stein - Esta pergunta é fácil: sou um produto genuíno do teatro estatal alemão, venho da tradição deste teatro, no qual existe um conjunto permanente de atores, também conhecido como “Ensemble”, que desenvolve ao longo de um ano vários projetos, num lugar fixo, geralmente numa província, mesmo Berlim, é uma aldeia. Quantos habitantes tem Berlim, três milhões e meio, quantos habitantes tem uma cidade como São Paulo, por exemplo, treze milhões, neste sentido é bastante triste a realidade do teatro alemão, são pequenas cidades, este teatro se realiza em pequenas cidades, esta é a qualidade e também a carência do teatro alemão. Esta é a realidade de onde eu venho, enquanto Wilson vem da América, vem do Texas, com uma influência enorme dos mídias visuais. Peter Brook vem do teatro inglês, do qual ele se emancipou para constituir seu próprio laboratório dramático. Isto não pude realizar. Criei a Schaubühne como um contramodelo da práxis teatral do teatro estatal dos anos sessenta, que era também, em princípio, a tentativa de dar continuidade aos aspectos positivos da tradição do teatro estatal. Eugenio Barba é alguém que, partindo de Grotowski constitui uma espécie de ideologia do teatro que não me agrada. Não me alinho a este grupo dos ideólogos do teatro. Não sou nenhum guru, não posso desempenhar o teatro com este propósito banalizante tão raso. Já Chéreau vem do teatro francês e talvez seja aquele que mais se aproxima de mim. Ele é uma figura muito jovem e que dispõe de um grande reservatório artístico, mais do que eu. No fundo, é aquele que mais se aproxima de mim, pois ele não tem esta tendência de tentar “revolucionar” o teatro do qual provém, mas sim otimizá-lo.
Bravo - O Sr. é um crítico feroz de Brecht, daquilo que tem de pior em Brecht, a saber, a vulgata e seus ideólogos, a quem considera inclusive um “cabeçudo”. Mas até Adorno reconheceu que o lado artista Brecht neutraliza em parte a ideologia, desmentindo a todo o momento seu aspecto doutrinário. Pois Brecht dramatizou a teoria, elevando-a a uma dimensão ficcional e quase estruturante e isto também é um princípio poético decomposição. Há apenas duas exceções-concessões em sua carreira a Brecht. O Sr. poderia falar delas.
Peter Stein – Bom, em primeiro lugar precisaríamos saber o que um Adorno entende por teatro. Esta, sem dúvida, não é uma questão muito fácil em Adorno. Diria apenas que as pessoas, como Adorno, que não estão diretamente envolvidas com o “métier” teatral têm concepções bastante idealizadas da cena. Este problema reside, em primeira linha, no fato de que o teatro em si opera como uma forte instância metafórica e síntese de todas as formas de representação. Esta idéia está impregnada até mesmo no senso-comum, no emprego usual da expressão: teatro de guerra, auto-encenação, a palavra é uma metáfora recorrente, o mundo é uma cena, a existência oferece-se como esta representação. Isto também parte do pressuposto de que todos possam ser atores e sem uma técnica específica realizar este “métier” e dar uma configuração à própria vida. Temos de construir em torno de nós uma certa aparência para que o outro nos responda de certa maneira. Devemos caminhar pelas ruas e ir para nossos escritórios com esta encenação. Desta forma, precisamos estar recorrentemente nos reportando a formas de encenação. Mas o teatro em si é uma realidade bastante específica, uma disciplina com um objeto bastante delimitado e histórico. O problema do fenômeno Brecht para mim é a ideologização da cena. Isto é mortal para o teatro. Quando ideologias, ou mesmo religiões irrompem neste espaço fechado, o edifício vem a baixo. As ideologias têm a tendência de reduzir todas as coisas a um esquematismo muito primário, assim como as religiões, a ideologia pressupõe certezas sagradas. O teatro, no entanto, vive do fato de que tudo que transcorre em cena é tão paradoxal e contraditório, que não se pode deixar a cargo de um esquema esta interpretação. Vou lhe dar um exemplo bem trivial. Você é o espectador e eu me apresento diante de você e digo: “Um, mais dois são três”. Como você reage: “Sim, eu sei, mas o que você pretende dizer exatamente com isto. Ah, você está me escondendo alguma coisa com esta banalidade”. Esta é uma expectativa do público. Tudo que é dito em cena é sempre suspeito. Sempre se afirma algo, para que logo em seguida seja desmentido, o que conduz ao fato de que tudo que acontece em cena já esteja de antemão neutralizado pelo espectador. E isto significa também que, quando se afirma que um mais dois são três num certo tom, esta afirmação pode significar tanto a morte iminente da personagem, ou que esta personagem esteja para se casar. Desta maneira, a cena é o pior lugar de doutrinação, para mensagens inequívocas. O elemento característico do teatro é seu efeito de metamorfoses, sua rotação permanente de sentidos. O que é vivo perece, o que é morto ressuscita, o verde torna-se vermelho e vice-versa etc. Este é o paradoxo da cena, da vivência teatral. Desta maneira, a atividade do Sr. Brecht é mortal para o teatro e o mergulhou numa crise mortal da qual até hoje ele não se recuperou. O irônico é que ele, como elemento vivo e pensante, como você afirmou, ficcionalizando sua teoria, é desmentido permanentemente em cena. Apenas no instante em que este elemento e certezas doutrinária chega a seus discípulos e no terceiro escalão da classe, transformando-se numa vulgata, cai-se finalmente naquela armadilha que envenena o teatro e o diminui. Foi exatamente isto que aconteceu com o Sr. Brecht, eu diria, quase que num fenômeno de histeria teatral coletiva como a historia do teatro da RDA. Como era este teatro: era uma vergonha da prostituição estética. Nos anos setenta, e com base na “experiência autêntica de Brecht”, servia a esta ideologia como uma prostituta fiel. A reunificação teatral já tinha ocorrido muito antes da reunificação política. Quando vários diretores e atores da RDA vieram para cá, e eram uns privilegiados desavergonhados, com passaporte duplo. Enquanto a população permanecia trancafiada atrás do arame farpado, eles se movimentavam desenvoltamente em nome desta vulgata brechtiana. Heiner Müller e outros. Eles não passavam de traidores, de inimigos do povo. Dispunham de privilégios inconcebíveis diante da massa. Eles dispunham de um passaporte enquanto 99% da população não, isto é, o direito elementar de ir e vir. Isto é muito pior do que viver abaixo do limite de pobreza na República Federal da Alemanha. É uma enorme diferença categorial, pois, pelo menos, quem está abaixo do limite de miséria tem condições hipotéticas e a liberdade de trabalhar, enquanto que aquele que sequer de um passaporte dispõe não pode sequer transitar. E esta ditadura manteve esta classe teatral durante décadas neste esquema vergonhoso de privilégios dos camaradas. Então estes camaradas vêm para a República Federal e oferecem seus préstimos, comportando-se como os “melhores e mais fiéis discípulos de Brecht”, aqueles que ensinam o que é certo e errado. Com que moral eles pretendiam ensinar alguma coisa a alguém? É risível. O que eles queriam nos ensinar, este palavrório insosso sobre os desastres do progresso, estas montagens modernosas com pequenas piadas privadas, com a manipulação de grandes obras de arte. O mesmo se passa com Brecht, tome “Galileu Galilei” .Leia a peça e a compare como ela é pobre diante da biografia do cientista Galileu, que é muito mais rica e nuançada, para quem realmente se interesse pela ciência. A peça do Sr. Brecht não passa de uma versão esquemática de um marxismo muito ordinário, diga-se de passagem.
Bravo - E o material de “Fatzer”, tão idolatrado como o fantasma de anarquismo que desafia o funcionário público estalinista de plantão?
Peter Stein - Sequer uma peca é, é uma obra prematura. Nunca se tornou uma peça. Somente encenei duas peças de Brecht, nas quais ele luta consigo mesmo: “Na selva das cidades” e “A Mãe”, que é uma peça de passagem, na qual se curva ao estalinismo. Um documento melancólico, mas muito interessante.
Bravo - Tchekhov para o Sr. representou uma espécie de autocatarse. O Sr. toma este material como um exercício de auto-disciplina e reflexão, um esclarecimento em ato. A sua adaptação de “As Três Irmãs” de Tchekhov e "O Cerejal" foram consideradas uma obra-prima do detalhismo cênico, um minimalismo da paixão. Duas perguntas: como o Sr. avalia esta experiência hoje? Segunda: Já que não podemos reconstruir integralmente a superfície cotidiana deste mundo que o Sr. evoca, um universo em dissolução, não haveria o risco neste realismo cênico de extrema precisão que nossas concepções do encenado não passem de um complacente jogo auto- refererido, como lhe apontam muitos críticos?
Peter Stein - Minha história com as encenações russas é bastante antiga, aliás, minha história pessoal com a Rússia é também muito difícil de ser reconstruída e vem desde minha infância. É impossível escapar de Tchekhov quando se faz teatro e se aprende o que realmente o teatro significa.
Pois Tchekhov não escreveu apenas peças realistas, mas obras de arte inteiramente construídas e muito sofisticadas, nas quais, em seu acabamento aparecem elementos estruturais de uma partitura de Mozart, nas quais não se pode excluir sequer uma palavra ou uma cena, sem prejuízo integral da estrutura, o que é um privilégio das grandes obras de arte. Isto vale especialmente para “As Três Irmãs” e para “O Cerejal”, ambas verdadeiras obras-primas em seu acabamento, nas quais cada parte refere-se ao conjunto e vice-versa. Quando nos ocupamos com Tchekhov, não estamos nos ocupando apenas com um único autor russo, com esta partitura genial, mas com um fenômeno muito específico do século XX e, acredito também, dos séculos vindouros. Aquilo que denominamos de teatro do século XX baseia-se em Tchekhov e em seu trabalho conjunto com Stanislawisky. De seu obra, provém em grande parte o teatro que se fez no século XX, de fato, a partir do qual origina-se o conceito moderno de direção e dramaturgia como domínios separados, nos quais ele inseriu. Daí deriva também uma tradição da pedagogia do ator, que influenciou profundamente a arte de representar até hoje. Não apenas os atores de teatro, mas sobretudo os grandes atores do cinema, sem os quais o cinema sonoro jamais teria uma chance. Acrescenta-se a isto que eu descobri que o teatro hoje na Rússia desempenha um profundo papel. Talvez os russos sejam os últimos europeus que realmente amem o teatro enquanto tal. Isto é notável. A prova disto é que, quando a União Soviética desmoronou e os teatros deixaram de receber subvenções - como na RDA, na Polônia e na Hungria, onde o teatro sofreu um golpe gigantesco em seu financiamento, já que o teatro nestes países representava muitas vezes o único canal aberto da opinião pública, como crítica subcutânea - o que desaparece no momento em que a TV diz a verdade-, na Rússia os teatros continuaram cheios mesmo depois do colapso. Os russos amam o teatro como ele já foi uma vez e como ele é desejado como emoção. Por esta razão, esta foi uma experiência extraordinária para mim e me maravilho com a qualidade dos atores russos. Compararia-os apenas com os melhores atores americanos. Procurei então aprender e observar sobre a tradição destas encenações, ao mesmo tempo, tentando evitar alguns erros, pois Tchekhov escrevera suas peça para irritar os atores russos. Ele conhecia muito bem seus métodos e escreveu peças que obrigavam os atores a se comportar de uma maneira distinta daquela em que se comportavam com o repertório tradicional. E por isso o teatro russo convencional sempre teve também enormes dificuldades com Tchekhov. Procurei a partir dos pressupostos em que Tchekhov escreveu suas peças, ou seja, pecas escritas para os atores e não diretamente para o público, um conjunto especial de atores, uma mesma relação como aquela que eu e Botho Strauss tivéramos na Schaubühne, em que Strausss escrevia algumas peça para determinados atores. Procurei estudar junto com os atores em vídeos, uns cento e cinqüenta vídeos aproximadamente de TV e de outras montagens e de filmes e de programas de rádio, ouvindo na língua russa e sua curva melódica original para entender de que maneira esta partitura se dava e então constatamos que havia problemas terríveis nestas encenações e no maltrato destes textos. Procuramos, por um lado, aprender e, ao mesmo tempo, evitar erros. Isto culminou em nossa encenação de “As Três Irmãs” em Moscou que, desencadeou um forte reação na Rússia. Na verdade, a grande sensação de minha vida, não foi “Tasso”, mas esta encenação russa de “As Três Irmãs”, a partir da qual surgiu uma nova relação com Tchekhov. Não são coisas que eu afirme, mas sim os russos. Bem, reporto-me à sua segunda pergunta. Você parte do pressuposto de que estas encenações aproximem-se da perfeição. Não, não se trata de perfeição como estes críticos afirmam. É que na verdade os movimentos psicológicos que Tchekhov descreve em suas peças são movimentos arquetípicos do pequeno-burguês e da cultura de funcionários públicos do século vinte, que ainda é a mesma de hoje, da qual ela se diferencia muito pouco. As condições de base para este, assim chamado, realismo psicológico permaneceram basicamente inalteradas até hoje. Mesmo assim, temos de retrabalhar estes dramas dentro de um ponto de vista psicológico do presente de modo que possamos dizer mais sobe a psicologia do homem. Temos, desta forma, que nos entregar ao movimento desta partitura e criar um mundo completamente fechado em si, mas aquilo que ele movimenta e do que trata fala das mesmas coisas que nos movem em nosso presente e que devem produzir em nós um sentimento. Pois a despeito da covardia, da pequenez e do caráter risível destas personagens, queremos estar com elas e participar deste universo, sofrer e viver com eles, embora elas sejam essencialmente negativas, da mesma maneira como na tragédia grega, na qual se derrama o sangue, todos os projetos fracassam, mas, mesmo assim, queremos que estas figuras da catástrofe permaneçam e prolonguem em nós esta sensação catártica de grandiosidade. O mesmo se dá com Tchekhov que conhece a tragédia grega. Nós queremos participar da infelicidade fascinante destes pequenos homens, de sua fascinação única, e para isto temos de criar um mundo especial para estes personagens. Vi uma encenação de Peter Zadek uma vez “Ivanov”, era apenas um palco vazio, mas todos os elementos do jogo teatral estavam lá
presentes, assim como em Tchekhov exige todos os adereços, cenários com árvores, figurinos, no caso das árvores eu as coloquei lá, pois era possível no teatro no qual. Dispunha de um palco de cinqüenta metros de profundidade na qual as pessoas podiam se movimentar e desaparecer neste gigantismo. Fiz o Cerejal com as cerejeiras e também sem elas. Mas o decisivo é o pequeno microcosmo destas personagens, destas relações e desta constelação de relações para que possamos reconstruir este universo da maneira mais perfeita possível de modo atingir a estrutura profunda da peça e a espessura da sensibilidade do homem, embora me critiquem pelo fato de que esta aparência seja uma “bela aparência sem saída”, fechada em si mesma. São reflexos, na minha opinião, de pessoas que querem retirar a autoridade de meu trabalho. A crítica começou a partir de um certo ponto a tentar retirar a autoridade de meu trabalho. Este jogo eu não aceito.
Bravo – Quando e por que começou este conflito com a “Theater Heute”?
Peter Stein – Começou desde o início de minha carreira. O Hennig Richbieter, o chefão da “Theater Heute”, que nunca conseguiu me engolir, já desde a primeira encenação investiu contra meu trabalho. Ele é bastante conseqüente neste ódio. Mas não é apenas na “Theater Heute”. A crítica difamante começa já na Schaubühne. E depois que fiz meu primeiro Shakespeare, “Como lhe agrada” , acabou de vez minha relação com a imprensa alemã. Trata-se sempre de uma campanha difamatória contra meu teatro ou minha personalidade, pois eu não tenho contato com a imprensa alemã. A partir de um certo ponto, dei um ponto final, mas estes ataques não arranham sequer qualidade de meu trabalho, o público os desmente. O desespero está justamente aí. Os críticos de teatro sabem exatamente que eles já não têm mais nenhum influência sobre o público, eles têm influência apenas sobre o aparelho cultural. Eles lêem apenas o programa e quando precisam saber de algo, seja como intendentes, ou jornalistas independentes, então, dão uma passada de olhos na “Theater Heute” para saber o que anda acontecendo. Eles não querem e nem podem mais se comprometer a ter de assistir a uma peça. Desejam apenas fazer política no pior sentido do termo. Nunca estive no mercado. Sempre estive isolado no teatro alemão. Criei a Schaubühne. Sempre trabalhei num mesmo teatro e num mesmo “Ensemble”, durante vinte anos. Assim procedi deliberadamente, pois queria dirigir um “Ensemble” e não ser diretor de circo, ou trabalhar com atores que simplesmente não suporto. Desejava trabalhar num teatro de “Ensemble” no melhor sentido alemão do termo e conseqüentemente acabei ficandofora de alcance, o que irrita muitas pessoas. Sou o primeiro crítico feroz de minhas peças, mas este tom injurioso é covarde. Minhas encenações estão sempre sobrecarregadas de expectativas e estes críticos também. A capacidade intelectual destes críticos que escrevem em jornal é catastrófica, são pessoas de muito baixo nível, remunerados de maneira irrisória. Quando assistem às minhas montagens, vêem-se diante de desafios para os quais não tem qualquer instrumental, sequer do que se trata muitas vezes sabem, sequer de entender este nível mais elementar são capazes, pois geralmente muito burros para isto. Não sou um homem de teatro na origem. Vim da universidade. Se fosse capaz de escrever, teria me tornado escritor, se tivesse uma capacidade de articular melhor minhas idéias, se não fosse tão burro, poderia ser um erudito, um cientista, talvez para o teatro eu sirva, ou exatamente por isto, pois sou muito indisciplinado intelectualmente. Não posso me sentar muito tempo numa cadeira, preciso discutir com os outros. Sou também um pouco preguiçoso para este trabalho sistemático e do ponto de vista mental, indisciplinado e distraído.
Bravo - E o caso Heiner Müller? Müller apreciou sua montagem de “Robert Zucco”, de Koltès. Seria esta a única convergência?
Peter Stein - Não, não é a única, Heiner Müller é um dos poucos que se relaciona de maneira privilegiada com a linguagem. O problema é que Heiner Müller nunca escreveu uma peça de teatro, apesar de sua potência expressiva. Trata-se sempre de faturas descontínuas, e no caso de Müller, também, em minha opinião, da falta de disciplina intelectual. É um teatro na trilha de Artaud, provocativo e precisamente esta linha, esta atitude considero, precisamente em função desta interminável pintura negra do real.
Bravo - Luc Bondy acha que o problema de Müller é sua relação de “ereção permanente” da linguagem.
Peter Stein - Ninguém consegue manté-la de fato. Bem, diria que no caso da linguagem, ele também padece de seu mestre Brecht, daquele primeiro Brecht, e no exato momento em que perde o controle, cai no mesmo baixo nível dos alunos mais disciplinados de Brecht e na auto-paródia. Há muito textos de grande beleza em Müller, sem dúvida, mas são apenas cinco ou seis páginas de literatura. Esperei por muitos anos que Müller realmente escrevesse uma peça de teatro que pudesse ser encenada, mas isto nunca ocorreu, e com o tempo ele desenvolveu um certo pensamento dramatúrgico, que não fucionou em nenhuma de suas encenações
Bravo – E o Müller já como dramaturgo de “Hamlet-Hamletmaschine”, “Mauser” no Deustches Theater, encenações que noites inteiras.
Peter Stein – Bom, em primeiro lugar, “Hamlet” não é uma peca de Heiner Müller, mas de Willian Shakespere. “Mauser” e “Hamletmaschine” são fragmentos que sequer uma forma têm, não são peças de teatro. “Mauser” é uma autoparódia de Brecht, de “A Decisão”, e “Hamletmaschine” sequer uma peça é. Para mim, nenhum destes textos é teatro, não são produtos de uma escola dramatúrgica, mas de uma etiqueta. Como se chama a peça Até me esqueci o nome.
Bravo - Seria a “Germânia, Morte em Berlim”?
Peter Stein - Pelo amor de Deus, a gente não pode fazer uma coisa dessas e chamar de teatro, somente pessoas muito toscas são capazaes de encenar aquilo. Bem, nada contra. Podemos até montá-la, mas na hora de analisar seriamente o que aquilo significa, com calma e isenção, somente podemos rir. Não passa de uma série de clichês emocionais e pensamentos estereotipados que destroem a escritura. Além disto, Müller dá vazão a este detestável clichê do típico alemão que tanto agrada aos estrangeiros, oh, como somos maus e terríveis como alemães, ah esta esta velha pretensão do doutrinador, da espécie tenho de ensinar a vocês como somos terríveis, como a Alemanha é diabólica. A gente não pode sustentar uma postura destas, sobretudo no teatro.
Bravo - Como o Sr. explica este sucesso de Müller no exterior, na França.
Peter Stein - Os franceses adoram o que os alemães detestam, eles adoram estes clichês sobre os maus alemães. Eles adoram o expressionismo alemão, pois nele se esconde a suposta “alma negra e demoníaca” dos alemães. O meu teatro e o meu pensamento não pressupõem nenhum destes clichês sobre a alma alemã, mas referem-se à tradição em sentido concreto. Acho isto em ordem. Por favor, entenda-me bem. Acho até muito produtivos estes desentendimentos interculturais, vejo o caso de Kleist na França. Eles não entenderam nada sobre Kleist, como as encenações de Gérard Phillipe. A gente se estrebucha no chão de rir assistindo a uma montagem destas, mas é um equívoco até produtivo, pois isola o clichê . Mas você pergunta o que acho disto: tenho uma relação diferente, como alemão, em relação ao centro desta tradição, uma aproximação diferente com o seu núcleo. Somente consigo me relacionar com textos que aceitem uma prova de sustentabilidade. O problema é que não consigo desenvolver nestes textos nenhuma qualidade durável. É como se me aparecesse um fantasma na frente, sem qualquer consistência, assim como não posso, pelo mesmo motivo, escrever. Escrevo meus rascunhos, releio e jogo fora pois acho imprestável. Não posso me distanciar de mim mesmo. Acho estas coisas ruins, como meus próprios textos. Desta maneira, tenho de trabalhar com materiais, parceiros, textos que me garantam acesso a camadas mais fundas deste material, num domínio em que possa me achar, mas diante de coisas etiquetadas e construídas arbitrariamente, viro as costas e dou risada. Mas quando alguém que é reconhecidamente burro quer se passar por sábio como alguns diretores, neste instante, deixo de estar interessado. Quando alguém se dá o direito de tomar de empréstimo obras-primas com esta liberdade sem dizer a que veio, então não tenho o menor respeito, pois não se trata apenas clássicos de uma cultura nacional, mas de um patrimônio da cultura universal. Trata-se de forma uma pilhagem cultural. Não posso fazer xixi sobre estas arquiteturas, com esta estatura, mesmo que fosse um cachorro bem grande. Em primeiro lugar, temos de entender o que estas obras significam em nosso presente. Castorp adora encenar seus textos privados. Pode-se fazer isto, pois o papel aceita qualquer coisa, pode-se passar a vida inteira falando besteiras, mas para mim é completamente desinteressante o que ele faça, pois Castorp é muito burro. Estou há trinta anos pesquisando o “Fausto”, com a retaguarda dos melhores especialistas na pesquisa filológica. Sei como a maioria das pessoas do teatro trabalha. Elas lêem a coisa por cinco minutos e depois a esquecem completamente, não se empenham e se deixam levar pela preguiça mental. Quando estas pessoas se aproximam dos clássicos, geralmente o resultado é catastrófico e não sobra a menor chance de se aprender nada. Com estas pessoas não poso aprender nada
Bravo - E Thomas Bernard?
Um grande romancista, mas não gosto de seu teatro. Ele muito bem torneado em sua linguagem, mas não consigo trabalhar com a dramaturgia de Thomas Bernard, que me parece também muito estreita. Quero voltar à questão anterior. O fato de que Heiner Müller tenho gostado de minha encenação de “Robert Zucco” decorra talvez do fato de que seja o tema de um criminoso serial. É a idéia de poder olhar naquele “abismo negro” de cada um. Heiner Müller não estaria certamente interessado no meu método de encenar. Foi apenas a peça que lhe agradou, é isto.
Bravo - Quando o Sr. criou o seu Ensemble, Bruno Ganz afirmou que apenas da confiança cega entre os atores poderia surgir o virtuosismo e a pureza na direção. O Sr. confia mesmo nestes novos atores?
Peter Stein - Isto é muito difícil de responder, pois não apareço agora apenas como diretor de teatro, mas como o responsável pelo “Ensemble”, como diretor financeiro etc. Desta forma, a confiança é em duplo sentido uma confiança estética e também organizativa. Mas naquilo que diz à respeito confiança, confio que os atores pelo menos tenham lido a peça e a conheçam em sua organização interna e de sua problemática. Já acho isto bastante. Naquilo que diz respeito à confiança nos meus conselhos estéticos, é um outro assunto. No momento, Bruno Ganz, que está inteiramente concentrado na apropriação desta enorme massa de texto, retribui-me inteiramente esta confiança. Quando esta assimilação amadurecer, ele terá sua própria posição na peça. Por ora, ele se entrega totalmente a mim, mas isto vai mudar. Mas a autoridade decorre deste empenho comum de que possamos, enfim, ler esta peça. Existe também um outro problema que é como nos relacionamos com as pessoas e no teatro temos a ver com homens, e não apenas de atores. O fator decisivo é como nos relacionamos com os outros. Para mim, o elemento central deste relacionamento é a dimensão humana mais funda deste encontro, um encontro entre sujeitos racionais. Estou na posição de falar mais claramente e discutir problemas de maneira a não ferir ninguém, de não impedir o outro de desempenhar seu trabalho, de não envenenar as relações, que não impeçam o desenvolvimento espiritual do outro, evitar os ressentimento esta doença tipicamente alemã, o ressentimento, é um câncer. Trata-se de uma incapacidade de reconhecer a realidade. Esta projeção permanente de etiquetas. Este pensa assim, aquele é um comunista... Deste maneira, não é possível mais dialogar. Esta espécie de ressentimento significa a impossibilidade de qualquer discussão intelectual. Com este ressentimento, não se pode discutir com os outros, com este ressentimento intelectual, é impossível desenvolver uma percepção sobre o mundo no qual vivemos, na medida em que nos definimos sempre em relação ao holocausto e ao passado nazista, o que nos impede de sermos novamente simples seres humanos normais, sobretudo entre os intelectuais existe esta incapacidade de desenvolver uma percepção mental mias clara da realidade na qual se vive.
Bravo - Esta histeria intelectual ficou evidente no Caso Sloterdijk?
Peter Stein – Uma tremenda besteira! Sim, este é um exemplo claro deste ressentimento, desta rotulação histérica. Você não pode dizer isto ou aquilo. Ora, não estamos mais na Idade Média. Este é o grande problema e desta forma não existe qualquer discussão racional. A mesma postura diante de Botho Strauss, que procura escrever textos poéticos que vão na contramão deste Espírito do Tempo. Sim, podemos criticar Botho Strauss por muitas razões, por estas imprecisões, nebulosidades, mas daí avança-se rapidamente para o rótulo de nazista e neoconservardor, que não tem absolutamente nada a ver com a realidade. Trata-se, antes de um contra-discurso, de alguém cuja sensibilidade vai na contramão das tendências culturais que se impõem como hegemônicas. São acusações risíveis. Não sou um homem muito bem humorado, mas devemos rir destas coisas.
Bravo - O teatro como totalidade. A grandeza das obras clássicas não é uma grandeza formal, mas humana, afirmava já Brecht, contra uma apropriação metafísica e idealista da herança literária. Não devemos nos intimidar com esta ideologia da classicidade. O seu teatro anseia também pela vida e pela totalidade de seu movimento. “Grande e Pequeno” era o nome da peça de Botho Strauss; para Goethe, existia o grande e pequeno quarto, o grande mundo do segundo fausto e o pequeno mundo do primeiro. O que é esta totalidade para o Sr, já que apenas hoje o capital escreve literatura mundial. Nào haveria o risco de carimos numa concepção abstrata de totalidade com este emprego do conceito de herança literária?
Peter Stein – Reitero. Não considero minhas encenações obras fechadas e acabas em si mesmas. Pelo contrário, acredito até que elas careçam de um maior acabamento formal e exijam mais empenho. Algo deve ser sempre corrigido e refeito neste “métier”. O que é fragmentário deve ser aprimorado. Existe também o risco de nos repetirmos sem saber. Devemos sempre fazer as mesmas coisas? Ou devemos nos interromper permanentemente, buscando a descontinuidade. Mas no que consiste este suposto aperfeiçoamento? Ele pode esconder a mesmice e o conformismo. Ora, não há uma resposta unívoca. O compromisso com o “métier” exige esta fidelidade, esta humildade e esta paciência do que é tecido pelo tempo. Somente assim é possível aprender com os erros. O trabalho neste “métier” é para mim sinônimo de uma reflexão permanente. Ela começa exatamente no momento em que fecho a porta da rua, lá, na qual está a “vida”, e entro neste espaço fechado e concentro-me em mim mesmo. Ninguém pode trabalhar na rua. Não acredito no teatro de rua, na “vida”, na qual não existe esta concentração, quando muito este, não passa de decoração, entretenimento, movimento, sem um núcleo estético, é algo extra-estético, que me é completamente desinteressante. Se não for assim, estamos diante do rádio, da televisão. Você leu os planfletos ridículos desta nova Shaubühne, que se propõe a fazer um teatro “social” com o seguinte mote: “O teatro esteve sempre na ponta de lança do Esclarecimento”. Ora, esta gente não sabe sequer usar a linguagem adequadamente. O que quer dizer na “ponta de lança”. É uma expressão duvidosa e mal formulada de acordo com o padrão culto da língua, o que é um sintoma. Além de tudo é um contrasenso histórico. O teatro nunca esteve nesta ponta do Esclarecimento, mas seu efeito não foi do esclarecimento, mas de polemizar e confundir.
Bravo – Pois se existe este gérmen de confusão na matriz do esclarecimento teatro, eu gostaria de saber quem olha a sua cena, qual é o olhar que a atravessa e a ilumina. Talvez o Sr. não se lembre desta história, mas o filósofo Fichte assistiu em Berlim em 1803 à montagem de “A Filha Natural” de Goethe. A peca foi um grande fracasso, mas lá estava Fichte na platéia, atento à forma de exposição dramática e pensando em sua “Doutrina da Ciência”, um texto que reescreveu com obsessão. Fichte mandou depois uma carta a Schiller, já que não um dos diletos de Goethe, comentando a peça e escrevu este belo soneto sobre o olhar reflexivo da cena absoluta do Espírito. Alías, Goethe já dizia a luz não vê mas ilumina. O que ilumina sua cena? (Pega o soneto e lê com atenção)
O que empresta ao meu olhar esse vigor,
Que todos os senões lhe parecem pequenos
E as noites se transformam em sóis serenos,
Em vida a negação, em solidez o tremor?
O que a confusa teia do tempo a transpor,
Conduz-me certeiro às fontes perenes
Do belo, do vero, de bondades e acenos,
E lá afunda, e aniquila, do meu empenho a dor?
Já sei. Desde que, no olho de Urânia, acesa
Em quietude, pude eu mesmo interiormente
A clara, fina, pura flama observar;
Desde então, tal visão me habita em profundeza
E é no meu ser – eterna, unicamente;
Vive no meu viver, olhar no meu olhar.
Peter Stein – Um história muito interessante, não a conheço. Muito bonito este soneto. Devo humildemente reconhecer que não pretendo e nem posso me alçar a este grau olímpico da auto-consciência e nem tampouco com esta intensidade poética. Eu sou muito pequeno e burro para isto, já lhe disse que sou apenas um homem de teatro. Se algo “fala” por mim em sentido intelectual, artístico, histórico, humano e econômico, então esta “inconsciência”, este olhar da cena é a síntese de todos os olhares, que também é o lugar nenhum, o ponto de fuga deste espaço. Desde menino, no final da guerra, quando eu tinha sete anos, tive de amargamente tomar consciência de mim em meio a um mundo inteiramente destruído. Sou muito triste por isto, mas pelo menos não cresci vendo televisão na vida, isto talvez faça uma diferença (risos). Sou manipulado por outras coisas e tive a sorte de ter um mestre em minha juventude que alimentou meu espírito com este manancial gigantesco da tradição artística e filosófica da Humanidade. Talvez neste sentido seja idealista, como você formulou na pergunta anterior. Faz trinta anos que cheguei ao teatro. Desde então procurei construir uma biblioteca interior, entende, daqueles livros que olhamos para dentro de nós, como uma janela voltada para dentro. Acho que este processo de formação do espírito é prerrogativa de todos os homens, desde que cultivados. Também acho um privilégio ter nascido numa época dura e de transição em que não havia o domínio absoluto da diversão, como hoje. Eu não agüento este tipo diversão. Volto à questão do pensamento da morte. Ela somente nos afasta deste. Não é diversão ser filho de pais que votaram em Hitler e não é divertido quando na minha juventude eu ia para o exterior e todos apontavam o dedo na minha cara por eu ser alemão. Mas enfim, tive esta sorte de ter uma aproximação crítica com a arte e não de maneira deslumbrada e se podemos falar que a arte é o jogo do espírito consigo mesmo, do prazer desinteressado kantiano, então estamos falando de algo muito distinto do que se entende por diversão hoje. A cultura é um processo de formação. Hoje, as peças fazem faculdades de teatro, mas são formadas pela televisão. Para fazer uma reflexão sobre o teatro é preciso mergulhar em sua tradição e esta reflexão também é uma reflexão sobre o mundo.
Expo 2000, Hannover
Breve cronologia da carreira de Peter Stein
1968 Direção de "Na Selva das Cidades", de B.Brecht
1968 Discurso do Vietnam, de Petr Weiss
1967 Intriga e Amor, de Schiller, Tetro Estatal de Bremen
1969 "Torquarto Tasso", de Goethe - Teatro Estatal de Bremen (Bruno Ganz)
Os anos de Schaubühne
1970 Assume a direção artística da Schaubühne, início da parceria com Botho
Strauss e o cenógrafo, Karl-Ernst Hermann, o "trio".
1971 "Peter Gynt ", de Ibsen
1974 - "Convidados de Verão", de Gorki (verificar a encenação brasileira)
1977 "Trilogia do Reencontro", de Botho Strauss
1978 "Grande e Pequeno", de Botho Strauss (Edith Clever como Lotte)
1978 "Como lhe agrada". Primeiro Shakespeare de Stein
1980 - "Orestíada"
Experiência Russa
1984 "As Três Irmãs", de Theckhov, Moscou
1984 "O Parque", de Botho Strauss
1987 "O Cerejal", de Thekhov
1989 "Roberto Zucco", de Koltès
1991-2 até 1997 Peter Stein é Diretor de Espetáculos do Festival de Salzburgo
sob a intendência de Gérard Mortier
1992 Julio Cesar, Willian Shakespeare
1992 Saída e ruptura com a Schaubühne
1994 "Orestíada" é agora encenada em russo mo Teatro do Exército Russo, em
Moscou
1996 - Professor convidado da Faculdade de Belas Artes de Berlim
Faust Ensemble
1997 - Criação do "Faust Ensemble" em Viena para organização e encenação
integral do Faust na Exposição Universal em Hannover em 2000
2000 - 17 de agosto estréia da versão integral de "Faust" na Expo 2000, protagonizado por Bruno Ganz.
*Publicada sob o título "O mestre de Fausto". In: Bravo. São Paulo, n . 30, março de 2000, pp. 64-74
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